O fantasma da Volta da Restinga
- Só um instante, Sr. Cacholé, que o
Dr. Prefeito, vai estar te atendendo!
– falou Cindy Corbélia – a recepcionista, telefonista e secretária do prefeito,
advogado e pastor da Igreja Eva-angélica Sideral de Virtuália, - Dr. Jairo
Edson. Corbélia tinha 1,78 m de altura, esguia, porém não era bonita; sua
soberba a tornava horrível e mantinha os homens à distância há vinte e cinco
dos seus quarenta e um anos de vida. Considerava-se autodidata no
conhecimento dos emaranhados da língua pátria.
- Oi, Paulo di Paulli, bom dia, você
vai estar acompanhando ele?! –
perguntou Corbélia ao Paulinho Goró que acompanhava o trêmulo Cacholé. A
faz-tudo do pastor tinha certa simpatia pelo Goró.
- Eu sempre ajudo os meus chegados,
dona! – respondeu educadamente o Paulinho, sempre sóbrio, mas com aparência de
quem viveu vinte e cinco anos no mundo etílico.
- Tomem cafezinho e tem, também,
água gelada no bebedouro; são só vocês servirem-ses.
O prefeito está em reunião com o
delegado e o professor Juliano. O Ju veio exigir providências do prefeito e do
delegado, pois lhe roubaram uma fantasia do atelier dele. – querendo justificar,
a demora, a secretária.
Dentro do gabinete:
- Pois como ficamos então Senhor
Prefeito? Minha fantasia para o concurso do jubileu da padroeira, na semana que
vem, foi roubada e eu pergunto aos senhores: - Como é que eu fico? Gastei uma
fortuna para elaborar a minha obra prima: - O
Deus das Águas no Mundo dos Espelhos.
Foram três meses cortando e costurando os dois mil quadradinhos de
espelhos; olhem minhas mãos cortadas e, nem as cutículas eu tive tempo de
tirar! Essa fantasia só tem valor para mim no concurso; deve de ter sido o meu
mais próximo concorrente quem a roubou só para eu desistir de concorrer.
Um “toc toc” e a porta se abre:
- Com licença senhor Dr. Prefeito?!
- O que queres Dona Corbélia? –
perguntou o prefeito.
- É que o Cacholé, seu caseiro lá do
sítio da Volta da Restinga, está desesperado querendo lhe falar contigo.
- Por todos os diabos... deve ser importante
ele não viria aqui à toa e, além disso, não sabe nem andar pela cidade. – disse
o Jairo Edson.
- Então é por isso que o Paulinho
Goró está com ele! – pensou em voz alta, a Cindy.
- “Mande” entrar, deve ser coisa
rápida; os senhores permitem não é mesmo?
- Sim, claro! – responderam os três visitantes em coro.
- Vou chamar eles! – disse a secretária.
- Sr. Cacholé e Sr. Paulo, o
prefeito vai estar podendo receber
vocês agora; podem entrarem-se!
...
- Com licença doto, eu vim aqui dizê
que num trabaio mais, de caseiro, prô sinhô no seu sítio. Di noite tá apareceno
um fantasma, na curva da estrada que entra nas suas terra. Onti, noiti di lua
cheia, ele estava lá enquanto a lua brilhava inhantis de chovê! – dizia afobado
o caseiro.
- Era só o que me faltava: - um
fantasma! – disse o prefeito-advogado-fazendeiro-pastor e prosseguiu:
- Bem já são quase dezoito horas,
vamos, todos juntos, fazer um lanche e depois eu os convido a irem comigo ver se
deparamos com o dito fantasma; a senhora pode ir para casa D. Cindy!
- Eu vou Jairo, como delegado de
oriximbanda posso enfrentar esse demônio! – adiantou-se em falar, o Juliano seguidor
ferrenho de babacorixá.
- Eu, como representante da lei,
tenho obrigação de atendê-lo, amigo e prefeito! – imperou Carabina Doze o
astuto delegado de Vituália.
- Eu vou com meu chegado e pego esse
espírito à unha! – intercalou o Goró.
Às dezenove horas chegaram ao sítio.
Estava muito escuro e não tinha energia na propriedade, devido ao chuvão da
noite anterior; Jairo acendeu o lampião e, na varanda, perguntou à Cacholé:
- Onde você viu o fantasma Aparecido
(este era o nome do Cacholé)?
- Onti à noite ele estava despois da
curva da estrada, no meio das árves de fruta! – respondeu o caseiro apontando
enquanto falava.
-
Iiiiiiiiiiiiihhhhháaáááááááá...He!He!He! Eu cheguei para arresolvê tudo; vou
converçá coessa arma penada, mais inhantis eu quero uma oferenda: duzentos mirréis.
Pode dá os caraminguás pro meu cavalo que ele vai comprá o que vô pedi prêle
despois.. Hehehehehehehh! – era o Juliano que incorporava o que ele chamava de
“O Caboclo Vendaval”; e fazia caretas, bocas e se entortava todo.
O prefeito se mostrou um homem sem
fé, medroso, enfim, um cagão; tirou da carteira duzentos reais e entregou ao
cavalo (nome dado àqueles que recebem entidades): - o próprio Juliano e, este,
pegando o dinheiro pediu para apagar o lampião e começou a conversar com o
espírito numa linguagem indecifrável e que só ele dizia entender:
- Intão tá, intão, sinhá mocinha,
vou falar prô dotô!
- Óia, seu dotô, acabei de falá com
o isprito. Ele era uma escrava lindíssima qui foi violentada e morta pelo
senhorio desta fazenda nus tempus dos escravo e quer, também, oferenda para ir
imbora comigo; quer quinhentos mirréis e... – Juliano/Caboclo Vendaval foi
rispidamente interrompido:
- Que conversa fiada é essa,
Juliano?! Esta fazenda foi construída em 1947, como pode ter espírito de
escrava aqui? – nisto um carro aproximou-se da curva da estrada e no meio da
escuridão da noite, armada para chover, os faróis do veículo iluminou o
fantasma no meio das árvores frutíferas. Pronto! bastou isso para Juliano/
Vendaval crescer no argumento e sua boca espumava como se a tivesse enchido de
antiácido efervescente:
- Tão venu, não disafiem os seres
das treva?! O isprito se zangou, veja como ele brilha de ódio! – realmente
alguma coisa brilhou quando os faróis do carro clarearam as árvores da curva da
estrada.
- Eu vou lá pegar esse bicho a unha
ou não me chamo Paulinho Goró! – falou e saiu em desabalada carreira rumo ao
brilho. O carro passou pela frente do sítio buzinando e sumiu na poeira da
escuridão.
- Peguei! Pegue o espírito! –
gritava Goró.
Já de lampião acesso o prefeito, o
delegado, Cacholé e Juliano correram até onde o Paulino estava caído no chão e
abraçado com: o Deus das Águas no Mundo dos
Espelhos.
- Minha fantasia, como veio parar
aqui?! – gritou o delegado de oriximbabaca seguidor do babacorixá.
- Devolva meus duzentos reais seu pai
de santo fajuto! – gritou o prefeito.
-Tá cancelada a queixa de roubo! –
disse o homem da lei, o grande, Carabina Doze.
- Cuma é que eu ia sabê, mi discurpa
patrãozinho?!- quase chorando balbuciava o Cacholé.
- Vamos voltar para a cidade que
tenho que vender meus espetinhos lá na praça! – falou Goró.
- “Me” ajude aqui gente, tenho que
levar a fantasia e ela é pesada para levar sozinho até ao carro!- todo
afeminado, falava o Juliano enquanto cuspia o resto da Alka-Seltzer de sua
boca.
- Você não vai na minha picape, se
quiser, vá à pé; são só duas léguas até seu atelier. Vista a fantasia sai
andando! – disse o prefeito dando partida na cabine-dupla, importada e novinha
que fora doada pelos fiéis à sua igreja.
Juliano quis dar mais uma de esperto
e, agora, tinha certeza que foi o seu rival em tudo, até na disputa de quem
fumava mais charutos, que subtraiu a fantasia e dado sumiço nela. Vestiu a
fantasia e saiu pela escuridão da noite, torcendo para que não chovesse, pela
estrada de chão, rumo a Virtuália.
...
Duas horas da madrugada e chovia à
cântaros, a campainha da casa do Carabina Doze toca sem parar e ele atende à
porta:
- Dr. Delegado do céu, eu quase
morri de susto, vi um fantasma ou um... um... ET... sei lá! ... na estrada da
Volta da Restinga pedindo carona. Quase o atropelei, mas ele quis fugir prô
mato e caiu dentro de uma vala cheia de lama.