sexta-feira, 27 de julho de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


Número da $orte
                   - Meu filho, Leo, é um rapaz de sorte!
           Não se cansava de falar Dona Flor. E ele acreditava nisto, pois já ganhara algumas rifas com seu número da sorte, o 51. Foram rifas de galinha assada, relógio de procedência duvidosa e, até uma camisa do seu time estrangeiro do coração, rubricada pelo ídolo maior. O número desta camisa, falsificada, é claro, o 51.
            Leonardo Sá, Leo Lindo, como era conhecido, pois era muito feio, feio geral, tomou sua primeira dose de aguardente aos 15 anos (15 é o 51 invertido) e apaixonou-se por ela, pois tinha, como nome, o seu número da sorte (*) e isto já são 15 anos que estão juntos, - um amor etílico.
           Numa quarta feira, Leo lembrou-se que havia sonhado com vários carnavalescos desfilando todos enfeitados, montados em cavalos e ele “sacou”, ou pelo menos acha que acertou no palpite: - Pô, um bando de machos fantasiados com penas e plumas coloridas só pode ser... ser... galo! É isso! E galo é o número 51!
            Contou o sonho para sua mãe e ela lhe disse:
       - Meu filho, espere até de tardinha quando a sua tia Noquinha voltar das faxinas que ela decifra teu sonho e, aí, você compra um bilhete de loteria com o bicho que ela lhe indicar!
            - Ô mãe, eu só tenho um real no bolso como vou...
           - Toma estes cinqüenta reais que guardava para pagar o aluguel. Com o que você tem deve dar para um bilhete inteiro!  - concluiu Florinda.
         - Cinquenta reais com mais um real dá:  51! isto dá para comprar até dois bilhetes completos! - falou Leo, com os olhos arregalados.
           Não teve dúvida, não esperou a Noquinha coisa nenhuma, saiu a percorrer os 15 pontos de venda de bilhetes de  loteria da cidade, perto de cada um deles, ele achava um boteco e beijava sua amada num copo americano. No último ponto, a Lotérica Número da Sorte de Virtuália, foi onde   ele encontrou o bilhete completo com os números 1551. Não excitou e comprou.
         Saindo da lotérica começou a gargalhar insanamente, pois estava com a “cuca” cheia de sua amada. Olhando para o céu e agradecendo a Deus, pela sorte, não reparou que o sinal de transito estava vermelho para pedestre e um ônibus o atropelou. O número do ônibus 51 e o final da placa 51.
       O funeral foi às 15h51min h, mas sua mãe não pode comparecer, pois teve uma síncope e foi internada por 15 dias.
     Ao receber alta hospitalar Dona Flor foi procurar pela sepultura do filho e, como não sabia onde ficava, foi até a recepção do “campo santo” e a recepcionista olhou no microcomputador e disse-lhe:
        - Dona, fica na quadra 51 sepultura número 51!
      Dona Florinda encontrou a sepultura e, como se tivesse falando com Leo, choramingou:
    - Leo, você devia ter esperado pela interpretação do seu sonho. Noquinha disse que, em sonho, macho enfeitado é galo, mas você esqueceu dos cavalos. Galo é 51 cavalo é 44 e somando dá 95 e este é o número do veado. Foi esse o bicho do bilhete premiado, meu querido!
     - Ah! Sorte ingrata, meu filho! Não foi uma boa ideia você ter se apegado tanto ao 51!

(*) Cachaça Pirassununga 51
            

VIDA E FÁBULAS


O mogno e a amoreira

              - E muito bonito a vista aqui de cima, amoreira, dá para eu ver todos os cantos da floresta, sendo eu, a árvore mais alta! – gabava-se o pé de mogno.
            - Você podia arredar um pouco seus galhos que me sombreiam, pois estou em floração e preciso de luz para que as abelhas e os pássaros venham a mim para a polinização! – gritava a amoreira silvestre em seu pequeno tamanho.
            - Não tem como, se eu arredar algum dos meus galhos, vem um vizinho nosso e ocupa o lugar! Contente-se com a penumbra! Aliás, não sei como viestes parar aqui na minha região, se tua espécie é  nativa da Alta Mantiqueira, de Campos do Jordão,... de região fria?! Ah! Ah! Ah! Ah!
                Triste a amoreira produzia poucos frutos, porém eram grandes e muito saborosos.
            ...
            Passaram-se cinco anos daquela vida vegetativa e certa manhã o mogno amanheceu aos gritos:
            - Não pode ser, não pode ser! Os humanos estão devastando este lado da floresta, estamos perdidos!
            - Conte-nos o que se passa grande árvore?! – implorou a amoreira que servia seus poucos frutos, a um bando de maritacas.
            - Eles, pelo visto, precisam de mais espaço e estão desmatando tudo para formar pasto para gado nelore. Estão usando dois grandes tratores, um em cada extremidade de uma corrente enorme, com quase cinquenta metros, para derrubar rapidamente vocês, árvores menores. Com certeza vou me safar disto, visto que, tenho quase cem anos e sou uma madeira nobre em processo de extinção; sou protegida por lei federal, entendeu amoreirazinha? – soberbamente falou o mogno.
               Na manhã de dois dias depois:
            - Olhe só doutora Nádia, o tamanho deste pé de mogno?! –falou Raimundo à ricaça, dona da nova fazenda que estava se formando.
            - Que ótimo, não é Raí, termos esta árvore justo aqui neste platozinho, pois é aqui que farei a sede da fazenda! – disse Nádia ao administrador do empreendimento.
           - Ahhhhhhhhhh! Estou salvo, como é bom ser uma árvore nobre! – suspirou em seu silêncio vegetal o mogno. E a doutora prosseguiu o diálogo com Raí:
            - Com este mogno faremos a casa-sede da fazenda e também os móveis; peça para cortá-lo ainda hoje que daqui a quinze ou vinte dias, neste calorão, a madeira já vai estar seca, ok?
            - Ok, patroa!
            - Ah, Raimundo, tem mais um detalhe:  Façam com que, na derrubada, o mogno caia para a direita, pois não quero que ele desabe sobre essa amoreira silvestre; eu simplesmente adoro amoras! Tome, prove uma e sinta que delícia de sabor, é muito mais doce que as que dão lá no sul do país; como veio parar aqui e como se desenvolveu nós nunca vamos saber, deve ser obra do Criador!
               Raimundo provou e falou:
- Tem razão, doutora, que delícia de fruta; vão ficar mais saborosas as próximas safras, pois esta arvorezinha terá luz do sol abundantemente todos os dias!
            - Será a rainha de nosso futuro pomar, Raimundo! – terminando o diálogo entre Nádia e o Raimundo.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA / VIDA EM FAMÍLIA


O Caldo

Tarde fria de domingo, como a maioria dos dias de meados do inverno, decidi:
            - Vou tirar um cochilo e ir para Virtuália, pois lá, sou eu quem faz o clima e, fui!
            - Nhô Antônio, o senhor está em casa? – gritei diante do portão.
            - Ei, seu Lê, tô aqui nus fundus, na horta, aprochegue, he, he, he, he! – gritou o meu querido amigo, sempre sorrindo.
            - Boa tarde Nhô, como tem passado?
            - Graças ao Criador eu tô muito bem, e ocê?
            - Estou bem, fora o frio que faz lá na minha cidade, o resto, está tudo tranquilo!
            - Ingraçadu, misifiu, u friu foi imbora daqui anssim que ocê chegou; vô inté tirá minha japona de bataia!
            - De batalha, Nhô?
            - É isso memu, ieu tenhu iela desde us tempus em qu’ieu era sordadu infermeru na segunda guerra mundiá, desde 1943, seu Lê; só se istraviô as divisa que tinha nas manga, he!he!he!
            - Caramba, Nhô, tem bastante tempo, hein?! Nem parece; teu jaquetão está inteirinho!
            - Pois é, inhantes as coisa era feita com mais seriedade; feitas prá durá
            -Depois que o senhor voltou dos campos da Itália continuou a ser enfermeiro?
            - Continuei inté me aposentá, aí vium este sítiu e, ieu e a falecida Ritinha fizemu aqui u nossu paraísu. Aqui prantamu e criamu di um tudo! U Criador – é só falar no Mestre e o Nhô descobre a cabeça  do seu chapéu e palha surrado – não permitiu qui nóis tivesse herderu é purissu qui vivu só aqui; às veis a Xerequéia vem fazê uma faxina i lavá argumas rôpa pra mim, mas ieu pagu viu seu Lê?! He!He!He!
- Não se senti magoado com o Criador o fato de Ele não ter-lhe dado filhos?
            - Craru qui não, seu Lê, quem semu nóis para se magoá com u Todu Poderosu?
            - É por isso que não tens religião e não frequentas igrejas, Nhô?
            - Não, misifiu, num é por isso; vou te contá lá na cuzinha inquantu façu um cardu forte pra janta! Ocê vai janta mais ieu, não vai, seu Lê?
            - Caldo de que meu amigo?
            - Di legume, ou cheja: inhame, abobra, vagi, tomati, batata doce, ispinafre cenora, baroa, batata e carne seca disfiada; u charque foi um amigu meu que me troxe despois que ieu dei prêle uma garrafada pru modi di levantá u ânimu! He!he!he!he!
            Na cozinha e ajudando no que podia o ancião, no preparo do caldo:
            - Comu nóis tava proseanu, eu te digu, seu Lê: U tempro du meu Deus  é a casa du meu isprito, ô cheja, u meu corpu! Despois du que já vi nessas igreja, nus terreru, nus conseiu dus padri e nus milagre dus pastô... tsc...tsc...tsc..., eu num aquerditu neis, seu Lê!
            - Tem uns tempu patráis,  muitus tresantonti memu, que eu fui levadu pela Ritinha numa dessas igreja vistosa, colorida e qui mais parecia um castelu; o pastô chefi proseô quaji uma hora de bobagi pru povu e despois gritô bem artu: - Oceis que já pagaru o dízmu, já deru a oferta de hoje, já deru u dinheru prá ajudá a modificá u jardim da igreja, que tar, agora, oferecê dois dias du seu trabaiu para o Senhor?       – Aí eu num guentei, seu Lê, peguei a Ritinha pelu braçu e nóis nunca mais fumu num lugar desses!
            - É, Nhô, a fé virou moeda de troca!
            - Ostru dia eu fui visitá um veiu amigu, o Tilelê, que foi  operadu de pedra na visícula – agora eie já tá bão – e entrou um bandu de pastô crente na infermaria, colocaru as mãos nas cabeças dus operadu e doente e diziam um monti de coisa. Eu num aguentei e saí de lá e fiquei num corredô enfrente adonde qui fica us doente com doença artamente contagiosa, - na ária isolada. Fui dá uma oiadinha pela janelona de vidru e tinha lá prá mais de vinte pobri coitadu; quaji todus mi reconheceru e acenaru prá mim. Comu us infermeru me conhece, eu entrei lá e conversei cum todus eies. Na saída, dessa ala, us pastô crente e mais uma turma de carola, estavam em frente à porta de entrada cum as mão levantada e oranu e eu perguntei:
            - Ué, purque que oceis num entra lá drentu para por as mãos nas cabeças deies?
            - Não queremu nus contaminá, meu senhô! – disse o que tava com o ternu mais alinhado. – Má sabia eies que já estavam com a pió das duença dos homi! Sabi qualé, seu Lê?
            - Hipocrisia, Nhô, é esta a pior das doenças da humanidade!
            - Justu, misifiu, justu!
            - A sopa tá pronta, vamos comê, seu Lê?
            - Vamos sim, o cheiro está muito bom, Nhô!
            - É o segredu du temperu qui a Ritinha me dexô de herança; despois  te falu deie, mas é segredu, viu amigu? Vamu tomá que já tá iscurecenu e... ingraçadu, tá vortanu a esfriá, não é seu Lê?
            Realmente, tomar sopa no frio do inverno é uma de minha predileção e aquele caldo saboreei com muito gosto, depois do aperitivo de pinga amargosa do Nhô.
            - Então já me vou Nhô, qualquer hora eu apareço!
            - Intão inté, intão misifio! Percisano é só aparece!
            - Tchau, então!
            ...
            -Rô, o caldo está pronto, vem logo para não esfriar!- falei alto para minha patroa que estava no quarto de costura consertando minha jaqueta dos tempos de guerreiro das estradas, - um caminhoneiro.
            - Muito obrigado, amor, mas não quero não!  Você esqueceu que eu detesto inhame?





             

sexta-feira, 20 de julho de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


PEDRO
                O calor estava à beira do insuportável.
Olavo parou a GMC modelo 1955 – só faltavam as quatro calotas originais para trocar a placa comum por, outra preta, de colecionador – perto do Restô, bar e restaurante de Virtuália - e pediu ao Gaúcho uma latinha descartável de água de coco, super gelada. Enquanto saboreava, o delicioso líquido ficou na porta do estabelecimento admirando a sua caminhonete. Na frente da possante “vermelha-chassi,” um catador de reciclável, parou seu carrinho com alguns materiais recicláveis; o carrinho era uma carcaça de geladeira na qual adaptaram duas rodas aro treze de automóvel, dois varões de madeira e uma travessa por onde alguém a puxava ou empurrava: - à tração-humana. O condutor veio até ao mesmo bar e pediu uma lata de cerveja, pagou, sentou-se no meio fio da calçada e palavreou, aborrecidamente:
- Calor dos capetas; vai ser quente assim lá no meio dos infernos!
  Olavo saiu dali e foi em direção da sua GMC; terminou a água de coco e tentou amassar a latinha apertando-a com sua mão direita, mas ela era mais dura do que as normais e não completou o ato. Chegando perto do carrinho de reciclável, jogou a latinha dentro e...:
- Ei, patrão, pode parar! Pega essa lata que você jogou no meu veículo! – gritou Pedro – pelo menos esse era o nome que estava, escrito em letras na cor amarela, na lateral da carcaça marrom de refrigerador.
- Ué, você não recolhe os recicláveis nas ruas? – questionou Olavo.
- Recolho sim, mas essa daí não vale nada! – Olavo a pegou e viu, nela, o símbolo de reciclável e dentro dele estava escrito: - aço, e compreendeu o que o catador quis dizer.
Após colocar a lata, propriamente dita, dentro de um cesto de lixo público, falou ao, suposto, Pedro:
- Ouça senhor, eu moro naquela casa amarela – disse apontando para sua residência – lá no fim desta quadra; passa por lá, pois tenho um saco enorme cheio de recipiente de alumínio, vazio, de cerveja, para reciclagem, ok?
- Hoje eu não posso, talvez depois de amanhã eu... não, depois de amanhã é sábado e eu não trabalho; talvez segunda feira por volta das quatorze horas, tá bom? Só irei depois do meu horário de almoço!
- Tudo bem! –falou Olavo e pensou em voz baixa: - Não dá para acreditar, o sujeito numa penúria de dar dó e cheio de normas e regrinhas?! Desse jeito ele nunca vai sair dessa vidinha...
Segunda feira, quatorze horas e um minuto tocaram a campainha lá do portão, era o tal catador:
- Entra aqui, meu senhor – ele beirava os cinquenta anos de idade – o saco, com as embalagens, está aqui nos fundos, o portão está aberto!
- O senhor não pode trazer o saco aqui? É que estou com muita pressa! – respondeu o sujeito.
Já sem paciência o dono da casa levou o enorme saco, que deveria pesar uns treze quilos:
- Aqui está, Pedro! Este é seu nome, não é?
- Não, não é meu nome, esse é o nome do meu veículo de trabalho; meu nome é..., mas peraí, as latinhas não estão amassadas?
- Não, não estão; eu as coloco aí nesse saco assim que as descarto! – respondeu o dono das latinhas, já com certa rispidez.
- Faz o seguinte: no próximo fim de semana o senhor as amassa e na outra segunda, neste mesmo horário, eu venho buscar, tá bom? – falou o dono do Pedro olhando para Olavo como que lhe dando uma ordem e, este, não suportou a audácia e respondeu em alta voz:
- Tá bom coisa nenhuma, ora bolas, não vou fazer nada disso e não tem mais latinha nenhuma! Quem ti vê sente pena e quer te ajudar, mas depois de conversar contigo a gente quer é distância! Pô, meu vá ti catar!
- Vá você, eu fazendo um favorzão em te ajudar a se livrar desse lixo e me discriminas?! Vou fazer um B.O. por discriminação; saiba que não sou analfabeto, já tive até casa própria e um negócio de vender hortaliças, só quebrei porque não tive sorte na vida e quer saber mais:
- Vai se ferrar, infeliz! – respondeu indo embora o catador de lixo reciclável, empurrando o Pedro vazio.
Olavo ficou no portão com o enorme saco com as latinhas derramando pelo chão falou:
- Está explicado o porquê de viver nessa miséria, esse pobre coitado!
- Ei moço, o senhor vai jogar fora essas latinhas? Se for, dê-as para mim!
- Vou sim, pode vir pegá-las! – respondeu-lhe catando as que tinham caído e as recolocando, de volta, dentro do saco.
A senhora elegante e bem vestida, desceu da novíssima camioneta importada, pegou o saco e o colocou no porta-malas e deu, a ele, um cartão:
- Tome meu cartão, nele tem meu nome, e-mail e telefones; quando tiver mais recicláveis é só me contatar que venho buscar, ok? Muito obrigada!
Ela entrou no seu veículo prateado, deu uma buzinada e sorrindo disse-me:
-Tchau!
-Tchau! – respondeu-lhe e leu no cartão amarelo claro com letras marrom:
-PESSOAS DEFENSORAS DOS RECICLADORES ORGANIZADOS de Virtuália (PEDRO) – entidade filantrópica sem fins lucrativos; o endereço da associação, telefone, e-mail, o nome da bela senhora e o número de seu celular.

            

sexta-feira, 13 de julho de 2012

VIDA EM FAMÍLIA


Duas Paixões Distintas

         Vinte e quatro de Janeiro de mil novecentos e oitenta e um, - dezenove horas.
         A angústia de um dia sem vê-la estava por findar. Em hipótese alguma, sequer, eu poderia saber com qual traje ela adentraria pela grande porta do cerimonial.
         Ali estava eu, de fatiota, impecável, no centro das atenções.
         À minha mente vieram as juras de amor e a certeza de que era o que completava a minha vida. Disse-me ela, certa vez:
         - Você, no dia “D”, vai ter uma grande surpresa e uma prova do meu amor, - será inesquecível, pode esperar!
         De repente uma saraivada de fogos de artifícios espocou no pátio do evento e meus pensamentos voltam àquele presente. Um piano começa a ser dedilhado e a obra-prima de Gounod é entoada pela doce voz da cantora-mór, - Dona Cotinha.
         A porta principal é iluminada. O corredor estava coberto, fora-a-fora, por um tapete vermelho-sangue e em cada lado dos bancos, que ladeavam o corredor, estava, alternadamente, ornado por ramalhetes de rosas brancas e vermelhas.
         O murmurinho é interrompido e dá lugar a uma só exclamação:
         - Ooooooohhhhhhh?!
         Meus olhos marejaram. Passei as costas das mãos para desembaçá-los e tive a visão mais encantadora, até hoje, que minhas retinas receberam. Escoltada pelo patriarca ali estava ela, vestida dos pés aos cabelos com minha cor preferida e sorrindo, linda, deslumbrante como eu nunca vira antes.
         - Olha a tiara, o véu, o vestido comprido e os sapatinhos dela são vermelhos, - que liiiiindoooo! - cochichou uma mocinha para outra e, eu ouvi.
         Admirei cada passo, compassado, que ela dava até ser-me entregue pelo pirotécnico Nicolino, - prestes a se tornar meu sogro. Beijei-lhe a testa e ela sorrindo e com os olhos brilhando de felicidade me disse:
         - Eu te amo... gostou da surpresa, - Colorado?
         “Caí em mim” e só então notei que as daminhas de honra, todas vestidas com vários tons de vermelho, tinham broches com o escudo do meu time do coração e até a túnica do padre era vermelha.
         Enfim juntos:- Eu e as minhas duas distintas paixões.


quinta-feira, 12 de julho de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


Pescaria

                No feriadão da semana santa, depois de um ótimo almoço cochilei e  fugi para Virtuália. Tinha combinado com Nhô Antonio Benzedô de ir “mais” ele às barrancas do Rio do Peixe para saborearmos algumas horas pescando.
- Sabe seu Lê, tem umas cousa qui ieu num intendu. Óia, se u governu num tem religião purque us funcionáriu púbricu num trabaiam nus dia santu? Pió ainda: - Purquê us funcionáriu du governu qui são crente ô evangélicu tamém num trabaiam? U sinhô sabe ixplicá? – na sua simples sapiência indagou-me o caboclo eirado com seu peculiar jeito de falar.
         - Não sei Nhô! Só a hipocrisia explicaria!
         -Intão tá, intão! Dexa prá lá!
- Nhô, já estamos aqui há uma hora e não pesquei nada e o senhor nem  jogou seu anzol na água?
- ‘Tô esperanu a hora certa, misifiu! Quandu u Sor tivé a pinu eu vô pescá um mandi de, maomenu, um quilu! Já perparei a lenha seca, u buracu nu chão e a fôia de bananeira para assá u pexe! Já-já sortu a isca nu riu! Os qui nóis pescá despois du mandi nóis sortá, tá bão?
- ‘Tá ok, Nhô! O bom dessas nossas pescarias é a companhia, o ar fresco, a natureza e as prosas!
- Mais i num é qui é memu, doto? He,he,he,he...
Não deu outra. Nhô jogou a isca e em dez minutos o mandi de mais de um quilo foi fisgado. E eu, admirado, olhava o que ele fazia: abriu o centenário alforge – herança do seu avô -,  pegou uma faca, dois limões e um saleiro. Abriu o peixe, limpou-o na beira do rio, espremeu os dois limões no peixe e sapecou sal no mandi. Depois enrolou o pescado na folha de bananeira, colocou tudo  no buraco e cobriu com um pouco de terra. Em seguida montou a fogueira encima do buraco tapado com o peixe dentro e a acendeu.
- Agóia é só isperá u pexe assá, - com a graça de Deus! Falou isso tirando o chapéu da grisalha cabeça e olhando para o céu.
Conversa vai e conversa vem perguntei-lhe:
         - Porque o senhor não se casou de novo, Nhô?
         - Despois qui perdi a Rita, uns quarenta anos atrais, num mi interessei pur outra muié, seu Lê! Fiquei recoídu nas minhas reza, minhas erva e com a natureza!
         Mas o senhor não sente falta de mulher, meu amigo?
         - Sintu farta de Ritinha, mas tanta farta qui, lá em casa, ieu ficu conversanu cum iela e, dentru dus meus pensamentus, iela me responde! Sabe, seu Lê, as muié , du pescoçu pra baixu, si não usá prefume nenhum, são todas iguá. A deferença istá du pescoçu pra cima!
         - Como assim, Nhô?
         - Num existe dois oiá iguá; num existe dois sorrisu iguá; num existe dois narizin iguá; num existe dois jeitin di falá iguá e...afinar num existe duas cabeça iguá a ôtra. I é dentru da cabeça que está u ispritu das pessoa, seu Lê! Cada ispritu tem u seu par qui é únicu. Já conheci e vivi com meu par, a Rita. Perfiru viver c’ as lembrança e sodade dela du qui cum qualqué outra cabeça. Entendeu misifiu?
         - Creio que sim Nhô...acho que sim! – quem seria eu para discordar com um pensamento tão...tão...”só dele”.
         Passaram-se cerca de quarenta e cinco minutos e eu tinha pescado dois piaus, uma peramutaba e um piau e  os devolvi ao rio. Nhô pitava seu palheiro, vício que ele cultivava desde os seus quinze anos. Nunca adoecera:
         - É purcausa das reza, erva e das raízes que eu mexu! – dizia ele.
         - Êpa! Este é dus grandão! -gritou Nhô e, realmente, era um dourado de mais de três quilos. Nhô o pegou, tirou-lhe o anzol da bocarra e o soltou dizendo:
         - He..he..he... douradão di sorte. Agradeça u mandi qui já deve de tá assadu!
Nhô levantou-se da pedra da beira do rio e começou a desmanchar o que restou da fogueira; desenterrou o embrulho de folha de bananeira e me chamou:
- Vem vê procê vê, misifiu!
Tirei o anzol da água e fui até ele e, este, abriu o embrulho:
         - Nossa Nhô, que aroma delicioso! – falei salivando aos baldes.
         - Pode começá a cume; usa as mãos memu! Tem farinha d`´agua du Pará na lata aí du ladu! Ah! mais inhantis, toma um goli deste aguardente com erva amarga; é bão para matar us verme, he, he, he, he, he! – deu-me,  numa caneca, um líquido perfumado de agradabilíssimo sabor, embora meio amargo. O mandi ficou realmente um manjar dos querubins.
         - Tenhu que í pra casa que u pessoá já deve di tá esperanu pela minhas reza de sexta-fera e hoji é especiá pra eles. Pode fica por aqui, seu Lê! Intão,  inté  intão!
         Fiquei com meus pensamentos divagando às margens do Rio do Peixe por mais ou menos duas horas. Com a saída do Nhô Antonio Benzedô, os peixes também se foram e eu voltei de Virtuália.
        

quarta-feira, 11 de julho de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


O fantasma da Volta da Restinga

            - Só um instante, Sr. Cacholé, que o Dr. Prefeito, vai estar te atendendo! – falou Cindy Corbélia – a recepcionista, telefonista e secretária do prefeito, advogado e pastor da Igreja Eva-angélica Sideral de Virtuália, - Dr. Jairo Edson. Corbélia tinha 1,78 m de altura, esguia, porém não era bonita; sua soberba a tornava horrível e mantinha os homens à distância há vinte e cinco dos seus quarenta e um anos de vida. Considerava-se autodidata no conhecimento dos emaranhados da língua pátria.
            - Oi, Paulo di Paulli, bom dia, você vai estar acompanhando ele?! – perguntou Corbélia ao Paulinho Goró que acompanhava o trêmulo Cacholé. A faz-tudo do pastor tinha certa simpatia pelo Goró.
            - Eu sempre ajudo os meus chegados, dona! – respondeu educadamente o Paulinho, sempre sóbrio, mas com aparência de quem viveu vinte e cinco anos no mundo etílico.
            - Tomem cafezinho e tem, também, água gelada no bebedouro; são só vocês servirem-ses.  O prefeito está em reunião com o delegado e o professor Juliano. O Ju veio exigir providências do prefeito e do delegado, pois lhe roubaram uma fantasia do atelier dele. – querendo justificar, a demora, a secretária.
            Dentro do gabinete:
            - Pois como ficamos então Senhor Prefeito? Minha fantasia para o concurso do jubileu da padroeira, na semana que vem, foi roubada e eu pergunto aos senhores: - Como é que eu fico? Gastei uma fortuna para elaborar a minha obra prima: - O Deus das Águas no Mundo dos Espelhos.  Foram três meses cortando e costurando os dois mil quadradinhos de espelhos; olhem minhas mãos cortadas e, nem as cutículas eu tive tempo de tirar! Essa fantasia só tem valor para mim no concurso; deve de ter sido o meu mais próximo concorrente quem a roubou só para eu desistir de concorrer.
            Um “toc toc” e a porta se abre:
- Com licença senhor Dr. Prefeito?!
            - O que queres Dona Corbélia? – perguntou o prefeito.
            - É que o Cacholé, seu caseiro lá do sítio da Volta da Restinga, está desesperado querendo lhe falar contigo.
             - Por todos os diabos... deve ser importante ele não viria aqui à toa e, além disso, não sabe nem andar pela cidade. – disse o Jairo Edson.
            - Então é por isso que o Paulinho Goró está com ele! – pensou em voz alta, a Cindy.
            - “Mande” entrar, deve ser coisa rápida; os senhores permitem não é mesmo?
- Sim, claro! – responderam os três visitantes em coro.
            - Vou chamar eles! – disse a secretária.
            - Sr. Cacholé e Sr. Paulo, o prefeito vai estar podendo receber vocês agora; podem entrarem-se!
            ...
            - Com licença doto, eu vim aqui dizê que num trabaio mais, de caseiro, prô sinhô no seu sítio. Di noite tá apareceno um fantasma, na curva da estrada que entra nas suas terra. Onti, noiti di lua cheia, ele estava lá enquanto a lua brilhava inhantis de chovê! – dizia afobado o caseiro.
            - Era só o que me faltava: - um fantasma! – disse o prefeito-advogado-fazendeiro-pastor e prosseguiu:
            - Bem já são quase dezoito horas, vamos, todos juntos, fazer um lanche e depois eu os convido a irem comigo ver se deparamos com o dito fantasma; a senhora pode ir para casa D. Cindy!
            - Eu vou Jairo, como delegado de oriximbanda posso enfrentar esse demônio! – adiantou-se em falar, o Juliano seguidor ferrenho de babacorixá.
            - Eu, como representante da lei, tenho obrigação de atendê-lo, amigo e prefeito! – imperou Carabina Doze o astuto delegado de Vituália.
            - Eu vou com meu chegado e pego esse espírito à unha! – intercalou o Goró.
            Às dezenove horas chegaram ao sítio. Estava muito escuro e não tinha energia na propriedade, devido ao chuvão da noite anterior; Jairo acendeu o lampião e, na varanda, perguntou à Cacholé:
            - Onde você viu o fantasma Aparecido (este era o nome do Cacholé)?
            - Onti à noite ele estava despois da curva da estrada, no meio das árves de fruta! – respondeu o caseiro apontando enquanto falava.
            - Iiiiiiiiiiiiihhhhháaáááááááá...He!He!He! Eu cheguei para arresolvê tudo; vou converçá coessa arma penada, mais inhantis eu quero uma oferenda: duzentos mirréis. Pode dá os caraminguás pro meu cavalo que ele vai comprá o que vô pedi prêle despois.. Hehehehehehehh! – era o Juliano que incorporava o que ele chamava de “O Caboclo Vendaval”; e fazia caretas, bocas e se entortava todo.
            O prefeito se mostrou um homem sem fé, medroso, enfim, um cagão; tirou da carteira duzentos reais e entregou ao cavalo (nome dado àqueles que recebem entidades): - o próprio Juliano e, este, pegando o dinheiro pediu para apagar o lampião e começou a conversar com o espírito numa linguagem indecifrável e que só ele dizia entender:
            - Intão tá, intão, sinhá mocinha, vou falar prô dotô!

            - Óia, seu dotô, acabei de falá com o isprito. Ele era uma escrava lindíssima qui foi violentada e morta pelo senhorio desta fazenda nus tempus dos escravo e quer, também, oferenda para ir imbora comigo; quer quinhentos mirréis e... – Juliano/Caboclo Vendaval foi rispidamente interrompido:
            - Que conversa fiada é essa, Juliano?! Esta fazenda foi construída em 1947, como pode ter espírito de escrava aqui? – nisto um carro aproximou-se da curva da estrada e no meio da escuridão da noite, armada para chover, os faróis do veículo iluminou o fantasma no meio das árvores frutíferas. Pronto! bastou isso para Juliano/ Vendaval crescer no argumento e sua boca espumava como se a tivesse enchido de antiácido efervescente:
            - Tão venu, não disafiem os seres das treva?! O isprito se zangou, veja como ele brilha de ódio! – realmente alguma coisa brilhou quando os faróis do carro clarearam as árvores da curva da estrada.
            - Eu vou lá pegar esse bicho a unha ou não me chamo Paulinho Goró! – falou e saiu em desabalada carreira rumo ao brilho. O carro passou pela frente do sítio buzinando e sumiu na poeira da escuridão.
            - Peguei! Pegue o espírito! – gritava Goró.
            Já de lampião acesso o prefeito, o delegado, Cacholé e Juliano correram até onde o Paulino estava caído no chão e abraçado com: o Deus das Águas no Mundo dos Espelhos.
            - Minha fantasia, como veio parar aqui?! – gritou o delegado de oriximbabaca seguidor do babacorixá.
            - Devolva meus duzentos reais seu pai de santo fajuto! – gritou o prefeito.
            -Tá cancelada a queixa de roubo! – disse o homem da lei, o grande, Carabina Doze.
            - Cuma é que eu ia sabê, mi discurpa patrãozinho?!- quase chorando balbuciava o Cacholé.
            - Vamos voltar para a cidade que tenho que vender meus espetinhos lá na praça! – falou Goró.
            - “Me” ajude aqui gente, tenho que levar a fantasia e ela é pesada para levar sozinho até ao carro!- todo afeminado, falava o Juliano enquanto cuspia o resto da Alka-Seltzer de sua boca.
            - Você não vai na minha picape, se quiser, vá à pé; são só duas léguas até seu atelier. Vista a fantasia sai andando! – disse o prefeito dando partida na cabine-dupla, importada e novinha que fora doada pelos fiéis à sua igreja.
            Juliano quis dar mais uma de esperto e, agora, tinha certeza que foi o seu rival em tudo, até na disputa de quem fumava mais charutos, que subtraiu a fantasia e dado sumiço nela. Vestiu a fantasia e saiu pela escuridão da noite, torcendo para que não chovesse, pela estrada de chão, rumo a Virtuália.
            ...
            Duas horas da madrugada e chovia à cântaros, a campainha da casa do Carabina Doze toca sem parar e ele atende à porta:
            - Dr. Delegado do céu, eu quase morri de susto, vi um fantasma ou um... um... ET... sei lá! ... na estrada da Volta da Restinga pedindo carona. Quase o atropelei, mas ele quis fugir prô mato e caiu dentro de uma vala cheia de lama.

VIDA EM VIRTUÁLIA



Pavão Misterioso

A grande final do desfile de fantasia estava prestes a se iniciar. Naquela noite o terreiro do samba, um imenso gramado, preservado pela prefeitura, estava lotado pela maioria da população de Virtuália.
         O palco e os jurados, três do Rio de Janeiro, dois de São Paulo, dois de Analogicópolis – cidade fronteiriça, e dois da própria localidade, estavam prontos e aguardando.
         Juliano estava em cólicas psicológica de tanta ansiedade. Afinal, disputava um prêmio de R$10.000,00 com seu rival em tudo: - na disputa de presidente da liga das escolas de samba da cidade; na escola onde eram os melhores professores; nas lojinhas de roupas - dois brechós - e no espiritismo, sendo o rival mesa-branca e ele da “pesada”.
         Juliano não mediu esforços para confeccionar sua fantasia; o nome: Rabo Quente de um Pavão Misterioso. Para isso, sem que ninguém visse, há um mês e à noite, invadiu a reserva biológica de Analogicópolis e arrancou as penas dos rabos dos pavões, faisões e avestruzes. O pessoal do meio ambiente, de lá, estava afim de “por as mãos” no responsável, pois duas aves morreram. Mas, o importante era ganhar e o premio já tinha destino: - pagar o Black-Hulk, o agiota mais perverso que se tem notícia na região. E ele estava na porta de saída do camarim, do evento, esperando pelo seu prometido dinheiro.
         A fantasia do rival estava deslumbrante, feita no Rio de Janeiro, mas a de Ju estava divina. Todo emplumado e com um adereço de penas que ia dos cabelos, tipo moicano, até o rabo enorme e cheio das penas roubadas coladas com uma resina altamente inflamável.
         O rival passou pela passarela e teve oito notas dez e um nove.
         - É agora ou agora! Que o Babacorixá me proteja! – pensou alto, Ju, e entrou como um pavão garboso e os aplausos eclodiram. Total de suas notas: oitenta e nove. Empate!
         Os jurados concluíram:
- Desfilarão novamente e quem mostrar uma única novidade, que seja, ganhara!
         O rival foi o primeiro e mudou o jeito de desfilar. Dava três passos para frente, um para trás, um pulinho desmunhecando e gargalhava, era a sua novidade.
         Ju estava sorridente. Agora, o dispositivo que colocara na fantasia, daria certo -não falharia como há poucos minutos - e sorria muito, tipo: - Já ganhei!
         Entrou na passarela e apertou um dispositivo no pulso esquerdo e... e... e..., a intenção era acender várias lâmpadas coloridas no meio das penas da cauda, mas a bateria de 12 V de moto, escondida no rabo, deu curto e a resina das penas incendiou instantaneamente.
         Tumulto geral!
         Juliano passou como um cometa pela passarela e se jogou sentado no gramado tentando apagar o fogo do rabo. Mas, foram os bombeiros que o apagou depois de uns três minutos.
         Ju foi desclassificado por colocar em risco a todos. Ficou quinze dias internado de bruços e processado pelo pessoal do meio ambiente da cidade vizinha.
         No dia da alta do hospital, pela manhã, sairia às 10h00 min, Black-Hulk e mais dois enormes capangas o esperavam na frente do hospital, há duas horas e, impaciente, foi à recepção e perguntou por ele:
- Fugiu do hospital há dois dias! Dizem que foi para a casa de uma tia lá pelas bandas do sul do Brasil, - Pelotas - disse-lhe Tininha a recepcionista.