domingo, 30 de setembro de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


Raiva

Foi uma semana inteira de chuva constante. Teteca estava sem chão, no literal da palavra. O Ribeirão Limpo e o Rio do Peixe transbordaram e levou parte de seu barraco, suas quinquilharias, seus sonhos, sua pouca alegria, seu sono e aumentou, em muito, sua bagagem de melancolia, tristeza, insônia e principalmente a raiva com Deus e o mundo, enfim, vivia um pesadelo.
Professora aposentada há vinte e oito anos. Toda sua carreira como mestre, das antigas – ela só tinha estudado até a quarta série primária – foi na fazenda da tricentenária família Bispo Cardeal. É de se lastimar, mas na vida interia ela só conseguiu apenas aquela espelunca, perto da confluência do ribeirão com o rio e, um salário mínimo mensal.
 Naquele domingo de manhã ela saiu do albergue da prefeitura de Virtuália, onde estava alojada, e foi ver a situação do seu casebre, - longe duas léguas do centro da cidade. O dia estava límpido como só a bonança sabe deixá-lo, ficando o sol, mais brilhante naquele dia de final de verão. Sentou-se num elevado de terra, perto do que restou do paupérrimo patrimônio, iniciando uma ladainha de praguejamento maldizendo o mundo. Por fim, apoiou os cotovelos nos joelhos e concheou as mãos nos ouvidos para não ouvir a alegria de viver dos pássaros, através de seus cantos.
Chorou... chorou!...de tristeza, de raiva e pela sua malfadada sorte, supostamente destinada, segundo ela, pelo Criador.
         Respirou fundo, tentando se acalmar, e percebeu um pássaro que voava de um galho, de uma paineira, até à barranca do ribeirão e voltava com uma bolinha de barro no bico. Era um João-de-barro em plena atividade na construção de seu ninho-residência; o pássaro era acelerado. Colocava a argila no, já quase finalizado, teto e fazia com o bico o que um exímio pedreiro faz com a espátula de acabamento. Depois ele ia até a frente da casinha e ficava como que verificando sua obra. Em seguida, voava até um capinzal e trazia no bico uma folha, de capim, morta; colocava-a na ultima porção de barro que trouxera e parou por um instante e desatou a cantar com alegria de ver seu lar quase pronto. Voou de volta até o ribeirão para buscar mais matéria prima.
         -Pássaro idiota! Tendo essa trabalheira toda em construir uma casa de barro! Porque não faz como todos os outros pássaros, - um ninho só de capim? – falou isso e jogou uma pedra na direção da construção do pedreiro das matas, destruindo-a.
         -Ah! Ah!Ah!Ah! Quero ver a reação dele quando retornar! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
         O João-de-barro voltou com uma porção de terra sovada no bico e pousou no galho defronte a casinha não entendendo a tragédia. Depois adentrou no ninho destruído, juntou o que trazia no bico, com o que restou da destruição e reiniciou a construção.
         Teteca irritou-se mais ainda com a persistência do pássaro. Olhou seu barraco com água pela metade e danou a praguejar:
- Desgraça, desgraça! O que é que fiz para merecer isto?Por que Deus me castiga assim? Vou ter que começar tudo de novo quando as águas abaixarem! Maldição! Maldição!”






sábado, 29 de setembro de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


TRAFFIC CALMING

Na minha frente ia uma carroça cheia de entulhos e o condutor puxou a rédea afim de o burro parar abruptamente.
Motivo: - Tinha que parar no traffic calming para um casal de idosos, que iniciava a travessia da Rua Bento Bispo-Cardeal num  bairro nobre de Virtuália. O senhorzinho, que parecia ter quase um século de vida, ia amparado pela esposa, cuja idade regulava com a do parceiro e, iam a passos lentos.
O carroceiro pacientemente desceu da carroça e começou a verificar as amarras da complicada carga.
Eu observava tudo: a composição perfeita (carroça, condutor e burro); o traffic calming; o casal de idosos lentos na travessia da movimentada e estreita avenida de mão única; eu, ali, na pick up GMC 1957 (só faltava ter placa preta de tão conservada a vermelhona-chassi) e, logo atrás, uma fila se formava.
Quando notaram a carroça parada começou a buzinação. O carroceiro, sem se preocupar, notou que a bengala do sinhozinho, que se esforçava para andar além de suas forças, caíra no chão e prontamente foi ajudá-lo. A orquestra de buzinas foi acompanhada de um sonoro coro de palavrões.
         Após atravessar o casal, o condutor da carroça, aproveitando o ressalto do traffic calming, falou ao burro:
         - Vem Shrekiko! – puxando-o pelo cabresto. Ele, com sua força animal,  arrastou a carroça para que ocupasse meia calçada e liberar os apressados.
         Vi pelo retrovisor, após passar pela passarela de pedestre, que o carroceiro falava sorrindo:
         -Bom dia! – para o motorista da Hilux, do Pajero, do Freemont, do Tucson e para o carro oficial do prefeito que parou e o próprio, estendeu-lhe a mão cumprimentando-o.
         O condutor autônomo de um veículo com tração animal demonstrou que cordialidade e respeito no transito independem de traffic calming.













terça-feira, 25 de setembro de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


SÁBADO NO JUBILEU

Na Capital Sideral dos Sonhos qualquer evento importante é de praxe ocorrer concursos de fantasias. Por isso, na semana do enésimo aniversário de Virtuália a grande expectativa, no penúltimo dia das festas, sábado à noite - que também é o jubileu do padroeiro  São Nunca do Vale do Rio do Peixe – é o grande desfile de fantasias. Só podem participar os habitantes do Vale Virtualiano do Rio do Peixe, ou seja, as cidades de Virtuália, Realópoles e Analogicópoles.
         - Caramba, carambolas e caracóis! Não vou poder participar fantasiado do “Gaúcho, - O Rei dos Coxilos!” Se vestir bombacha, chapéu, pala e botas vou ficar parecendo àquele presidente baixinho e gordinho do início da década de cinquenta! – lamentava-se Juliano Scheiβe em seu atelier de costuras e continuava a pensar em voz alta:
         - Mas eu tenho que continuar o regime para “engordecer” e participar do concurso de Rei Momo, pois dos cento e vinte quilos mínimo exigidos faltam-me dezenove quilos e com minha altura de um metro e sessenta e dois centímetros pareço que já tenho duzentos e vinte quilos, mas vai valer a pena! Ahhhhhhhhh, ser o Rei do Carnaval é o meu maior desejo, depois – é claro – de já ser professor de Zoologia Pré-histórica do Estado; eu vou conseguir nem que eu exploda de gordo! – o grande delegado de oriximbanda parecia que estava sem inspiração até que:
         - Mas o que vou vestir no desfile de sábado à noite... o que... o que... o que... o que...eureeeekaaaa! Já sei, já sei e vou arrasar! Ah, Juju, grande Lisbela tu és um gênio, se não vejamos:
         - O Julho Baiano, meu maior rival em tudo, com certeza, vai desfilar  fantasiado de baiana e eu vou matar dois Java porcos com uma só cacetada, ou seja, vou aproveitar minha gordura e desfilar de Carmem Merenda, só que gravidíssima! Ah!Ah!Ah! Vou matar a pau!
         Chega o esperado sábado.
         A Praça Bispo-Cardeal estava lotada de pessoas de toda a região e no centro, da mesma, a passarela montada. Ju era o penúltimo que desfilava. Todo “senhora” de si flutuava como uma baiana nos últimos dias de gravidez.  A fantasia multicolorida valorizava a enorme pança.
         - Já ganhou! Já ganhou! – gritava eufórico Hibisco, seu companheiro – que é conhecido como Beijo, - e sua família, incluindo, o Zé das Flores mais  o pequeno, peludo e estranho ETevaldo.
         Ju terminou seu desfile esvaindo-se em  lágrimas de emoção e, com certeza, achava que já tinha ganhado  o prêmio.
         Prêmio? Ah! - e que prêmio: Pacote completo (passagens de ida e volta, estadia e ingressos para duas pessoas) para assistirem a decisão do Brasileirão série D, quando for um GRENAL, - se isso acontecer um dia.
         Todos aguardavam o último candidato a desfilar que, por sinal, seria o Julho Baiano. Ninguém sabia como seria a fantasia, pois ele, até ser chamado para entrar na passarela, se escondera dentro de sua Towner furgão cor de rosa marca- texto.
         - E, por último a desfilar... que entre o Juuuuulho Baaaaiaannnoooo! – gritou o prefeito Jairo Edson,  imitando uma voz de FM.
         Todo garboso entrou o Julho e o prefeito narrava a composição da fantasia:
         - Julho está fantasiado de Gaúcho Alegre da Fronteira e traja: bombacha rosa choque em acabamentos dourados; botas vermelhas com detalhes branco, camisa pink; lenço lilás; poncho com as cores do arco-íris; fita-apache vermelha e azul segurando a peruca e nas mãos um laço de doze braças enfeitado com purpurinas!
         - Ohhhhhhhhhh! – exclamava a multidão e, Julho, deslizava sobre a passarela, boleava o laço por sobre a cabeça e cantava com seu sotaque baiano:
         “Gaucho eu sou...
         Nasci feliz...      
         Nesta terra formosa
         Onde estou...
         No sul deste meu país...”
         Juliano ao ver aquilo arregalou os olhos e desmaiou nos braços do Beijo e não viu o fim da festa, nem a vitória, indireta,  da Bahia através do Baiano e nem ouviu o que disse o Delfino Drew – gaúcho macho pra mais de metro – dono do Restô, que nas festas sempre vai vestido como manda a tradição:
         - Bah! Tchê é isso que denigre a nossa imagem de macho; nunca mais eu patrocino nada em Virtuália! Só aqui mesmo na Capital Sideral dos Sonhos é que um gaúcho, fantasiado de baiana prenha, perde para um baiano fantasiado de gaúcho “flozô”!





domingo, 23 de setembro de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


O PANIFICADOR

O engenheiro Cleber chegou ao refeitório dos peões, isto às 22h 30 min., e falou alto e claro para que os quase 80 peões que moravam no alojamento ouvissem:
            - Atenção, atenção! O padeiro teve que ser internado num hospital na capital e preciso de um substituto!
            - QUEM JÁ TRABALHOU EM PADARIA ANTES?
               O silêncio foi quebrado pelo Gaúcho, - peão braçal, embora meio delicado para a função, gremista esperto e que queria se livrar do serviço pesado na pedreira:
            - EU TRABALHEI TCHÊ, DIGO, “DOCTOR”! TRABALHEI CINCO LONGOS ANOS NUMA PADARIA!
            - Então, amanhã, às 4h 30 min. esteja na padaria do canteiro de obras, ok?
            - Ok, tchê, opsss.. ”doctor”!
            - Como é o seu nome e matrícula? Perguntou o engenheiro.
            - Daniel, mas todos me chamam de Gaúcho e o número de minha matrícula é 171!
            - Então está tudo acertado, não vai faltar, ouviu Sr. Daniel?
            - Ok, Senhor Engenheiro! - falou no seu jeitinho o Daniel.
No outro dia às 7h 00 min. estava um tumulto sem igual no refeitório. O cozinheiro e os auxiliares de cozinha só serviram café e leite. Dr. Cleber chegou e perguntou:
            - Que bagunça é essa, minha gente?
             - É que não tem pão para o café da manhã, doutor! – falou Wagner, outro gaúcho, mas tinha vergonha de dizer a origem, o administrador.
            - Chamem o Daniel? – gritou Dr. Cleber.
            - Quem? Ah! Tá! É o Gaúcho!- lembrou o Wagner.
Todos ficaram na expectativa do esporro no pobre do gaúcho e, este, chega trazido pelo administrador e, o engenheiro pergunta:
            - Daniel... Gaúcho diga-me: - Por que você não fez os pães como eu mandei?
            - PORQUE EU NÃO SEI “DOCTOR”! –falou na “bucha” o peão.
            - Seu... seu... mas você falou e todo mundo ouviu que você trabalhou cinco anos numa padaria?
             O Daniel, gremista, (daqueles nojentos e encarnador) cuja matrícula era 171 respondeu:
            - TRABALHEI SIM, MESTRE, MAS CARREGANDO LENHA PARA O FORNO!

O refeitório explodiu num coro de gostosas gargalhadas e todos foram para o “batente” inclusive o Gaúcho.

VIDA EM VIRTUÁLIA


O Mega Superintendente 

O cronograma da obra de terraplenagem estava atrasado em mais de uma semana. Quatro dos megas tratores-escavo-transportadores, franceses, estavam quebrados, e como eram antigos e fora de linha de produção, - a fábrica estrangeira falira, - não se conseguiam as peças de reposição, para os mesmos, no mercado interno. Só seria possível importando e tal importação, se fosse autorizada pelo MF, demoraria quarenta e cinco dias, isto se conseguissem as peças.
            - Engenheiro Evandro, vá até ao canteiro de obras e verifique as reais situações desses equipamentos, “se vira”!- disse asperamente o Dr. Bolívar todo poderoso presidente e dono da empresa ao engenheiro novato, - seu filho único.
            No dia seguinte às 14h00min, depois de muitas horas de voo e escalas, Evandro chegou ao Aeroporto Sideral de Virtuália (ASV); já o esperava um carro da empresa para levá-lo direto à reunião e lá chegando:
            - Sentem-se senhores, por favor! Eu sou o Engenheiro Evandro Martelos! Sou gaúcho de Agudo, superintendente sênior da empresa. Sou formado pela Harvard University-USA, fiz pós-graduação na University Cambridge- Inglaterra, doutorado na University Oxford- Inglaterra, doutorado em equipamentos pesados na University Toronto-Canadá, doutorado em mecatrônica na Kyoto University - Japão, falo inglês, espanhol, francês, italiano, mandarim e, além disto, tudo, e o que eu considero mais importante, são assessor virtual estratégico da Universidade Sideral de Virtuália (USV). Pedi que o Dr. Rafael, aqui presente, convocasse para esta reunião: os operadores das máquinas-paradas, o chefe da oficina, os mecânicos, o almoxarife e só depois vou ter uma reunião final com o engenheiro chefe da obra, - Dr. José Maurício!
            - Primeiro quero falar com o chefe da oficina e...
            - Sou eu doutor, meu nome é Paulo Tacir! – prontificou-se a se apresentar Galegão, eufórico.
            - Prazer meu senhor! O que tens a dizer? – perguntou Evandro.
            - “Óia” doutor, o que acontece é que o Bento, o Chico, o Tião e o Lelê estão muito velhos e não agüentam mais o “rojão”. “Se” trabalham dois dias, ficam dez no “estaleiro”. Eu acho que esses quatro deveriam ser “aposentados” e vocês mandariam quatro mais novos! Se não a obra não vai deslanchar! Não é pessoal?
            - “Ocê” tem razão, Galegão!  - disse Zé Mineiro.
            - “Ôchente”, é isso aí, cabra-macho! – disse Zé Calango.
            - Desembaçou meu mano!     – disse Zé Paulista.
            - Bah tchê, matou a pau!       – disse Zé Gaúcho.
            - Como engenheiro mecânico da obra, o que tens a dizer Dr. Rafael? – perguntou o superintendente.
            - Meu pessoal tem razão! Concordo em tudo com o Galegão, digo, Paulo Tacir! -falou o Rafael.
            - Eu não acredito no que ouço e vejo aqui! – disse o filho do dono da empresa, e continuou:
            - O presidente convoca uma reunião com a altíssima cúpula da empresa lá na capital, todos concordaram em me enviar para este sertão distante para resolver o problema e o que ouço: - um bando de homens “dedurando” quatro funcionários que, pelos nomes, devem ser de baixo escalão e humildes! Vocês não se envergonham de falar assim de quatro idosos sem que os mesmos estejam presentes?
            - É que eles não cabem aqui na sala Doutor! – falou Zé Calango segurando o riso.
            - Como assim? Não cabem na sala? Senhor Almoxarife, vai buscá-los imediatamente! É uma ordem!
            De pronto Geraldo Manoel respondeu:
            - Não tem como doutor!  O Bento, Chico, Tião e o Lelê são nomes de batismo dos tratores que estão quebrados. Os equipamentos da empresa são apelidados para controle dos bens patrimoniais. É assim na empresa toda! Vossa superintendência não sabia deste pequeno detalhe?
 Os risos comprimidos se soltaram num alarido só. Evandro não falou mais nada e encerrou a reunião e, junto com o Dr. José Maurício, seguiram para a capital. Com autorização superior, dos quatro tratores antigos fizeram dois que funcionavam razoavelmente. Quinze dias depois chegaram à obra: Zé Mineiro, Zé Calango, Zé Paulista e Zé Gaúcho – os novos tratores da empresa. Eram os primeiros produzidos em terras tupiniquins. Os nomes foram sugeridos pelo superintendente Dr. Evandro Martelos.



sexta-feira, 21 de setembro de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


歓迎, приветствовать, الترحيب , 歡迎 , WELCOME, BIENVENIDO , BENVENUTO,  BIENVENUE, WILLKOMMEN
BEM-VINDO

Sempre, quando viajo para Virtuália, paro e fico admirado com o  monumental portal na entrada:
“SEJAM BEM - VINDOS! VIRTUÁLIA, CAPITAL SIDERAL DOS SONHOS” - estes são os dizeres do letreiro enorme que nos recebe e, suas  cores,  combinam com o exuberante jardim muito bem cuidado. As três primeiras palavras, um dia, me  chamou a atenção e passei a notar que:
            No porta da Funerária Bispo-Cardealense, lá estava:
“SEJAM BEM - VINDOS!”
            Na entrada da Prefeitura Sideral de Virtuália (PSV) tem a frase:
“SEJAM BEM - VINDOS!”
            No portão principal do HPSV (Hospital de Pronto Socorro de Vituália), uma placa feita em aço inoxidável com as letras:
“SEJAM BEM - VINDOS!”
Na IEAV, - Igreja Eva-Angélica de Virtuália, - na porta principal do descomunal  templo tem duas placas:
- uma é a da frase:
“SEJAM BEM - VINDOS!”
- a outra:
DIA CINCO, ÚLTIMO DIA PARA PAGAMENTO DO DÍZIMO AO SENHOR!”
Em cima da imagem de São Nunca do Vale do Rio do Peixe, na entrada da Igreja Caótica Apostrófica Romana, a frase escrita com pirógrafo: “SEJAM BEM - VINDOS”! - esta em madeira velha corroída pelos cupins; na mão direita da imagem um moderníssimo banner com os dizeres:
“ATENÇÃO! DÍZIMO PAGO ATÉ DIA 10 TEM 10 % DE DESCONTO!”
No Restô, junto à logomarca do restaurante, tem o letreiro  – SEJAM BEM - VINDOS! – em neon que só é ligado após as dezoito horas.
            Uma das fachadas mais bonita, dos prédios de Virtuália, é a da Maternidade Maria Sem Salvação; lá estão  os dizeres, em letras bonitas,  nas cores rosa e azul:
SEJA BEM - VINDO!
      Sempre, quando saio do centro urbano, sinto-me pequeno diante da grandiosidade do Complexo Penitenciário de Virtuália – CPV e eu, pelo menos, acho um deboche esta frase em letras, no estilo, Time Roman pretas com o fundo branco numa enorme obra de arte em concreto armado: - Sejam Bem - Vindos!
            Quase na saída da cidade – antes do grande portal – fica o CMV (Cemitério Municipal de Virtuália) e sobre o enorme portão, a três metros do solo, uma placa confeccionada em chapa de aço, pintada com letras estranhas, a frase:
“SEJA BEM - VINDO!”
- Engraçado, – pensei comigo – em todos os lugares a frase está no plural; somente na maternidade e no cemitério está no singular! Por que será?
            Pensei e lembrei-me de que o Nhô Antônio Benzedô me falou certa vez:
            - U pruquê das cousa istá istampado diante dus nossos zóios, Misifio, basta sabê enxergá c’os zóios de curioso isperto!
            - Ah! Ah! Ah! Entendi, mas não sei se a intenção foi involuntária: - Vem-se para a vida material sozinho e vai-se dela, também, sozinho!
            Quando se passa pelo portal de saída, às margens da Rodovia Sideral, - se olharmos para trás – dá-se para ler:
“FOSTES BEM - VINDOS A VIRTUÁLIA -  CAPITAL DOS SONHOS!”
            - Realmente, em lugar nenhum do universo se produzem sonhos como lá! Principalmente os recheados com doce de leite de cabra mocho!


quinta-feira, 20 de setembro de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


Vacilos

                Há três anos:
- Pare “adonde” está, Tião! Levante os braços e te encosta no muro, “discostas” para mim! – gritou o cabo Liberato, - o Polaco.
            - Que foi que eu fiz cabo? Saí do presídio hoje cedo e estou desde as sete horas andando para ir para casa; não tomei café e nem almocei ainda, aliás, não comi nada desde ontem da hora da janta!- trêmulo falou o Nego Tião.
            - A delegada, da Delegacia das Mulheres de Virtuália, Doutora Maria Trinta e Oito, pediu para te levar até ela, vamos, entre na viatura! – ordenou o cabo.
            Sem mais argumentar, Tião obedeceu.
            Na delegacia:
            - Trouxe o cabra, Polaco! – perguntou Maria Trinta e Oito, esposa do delegado Carabina Doze.
            - “Truxe” doutora, “taquiêle”! 
            - Seu covarde, fica três anos trancafiado e tão logo  é liberto e já apronta de novo? E o pior, comete o mesmo crime? – indignada falava a delegada.
            - Eu não fiz nada antes e nem agora, doutora! Por favor, não estou entendendo nada, eu nunca cometi nenhum crime! – balbuciava o Tião e continuava:
            - Eu cumpri três anos de cadeia inocente e...  - o preso foi interrompido:
            - Foi ele delegado, hoje de manhã, ele chegou em minha casa e me arrebentou de pancada; quebrou até meu pivô de porcelana! – chorava de lacrimejar a Deolinda toda cheia de manchas vermelhas e com o dente postiço, intacto, na mão.
            - O que você diz disso Tião? – perguntou a delegada.
            - Eu não fiz nada, saí do presídio hoje cedo e, como não tinha dinheiro nem para a condução, vim a pé do Complexo Prisional de Virtuália; são três léguas da Restinga Molhada até aqui, doutora!
            - Mas foi ele que fez isto, doutora; o português da quitanda, seu Marconi, viu tudo, - ele é testemunha! – exaltada, quase berrava a morenaça jambo.
            - Tranque-o cabo; vou averiguar! – mandou a Maria Trinta e Oito.
            Tião ficou uma semana na cadeia de transição e, na segunda-feira, seguinte, lá estava ele novamente diante do juiz, juntamente com Deolinda, seu advogado, o Marconi e o advogado público defendendo o afrodescendente  Sebastião.
Foi rápida a sessão e o reincidente Tião, sem álibi nenhum, foi reconduzido ao CPV para cumprir mais três anos em regime fechado.
...
- Boa tarde Marconi separou as minhas encomendas?
      - Sim Linda, escolhi tudo de melhor para você, a morenaça mais linda de todo o Vale Virtualiano do Rio do Peixe; eu mesmo levarei quando fechar meu estabelecimento, ok?
         - Ok, portuga esperto, eu te aguardo, porém...
- Que, porém, meu pedaço?
- Eu preciso que me empreste uma quantia; o dinheiro que recebo do Estado, por estar o arrimo de minha família preso, não saiu ainda e eu não sei o motivo e preciso... - Deolinda foi interrompida:
- Eu levo, também, o dinheiro, minha linda! Lembras que dia é amanhã?
- Lembro sim; é o dia em que o Tião sai do presídio! – completou Deolinda.
- Vamos repetir a dose, cabrocha?
- Vamos sim e tem que ser amanhã quando acordarmos, mas você tem que pegar mais leve, seu bruto! – falou debochadamente e sorrindo a morena.
No dia seguinte, nove horas e quinze minutos, na delegacia;
- O que houve com a senhora, Dona Deolinda? – perguntou a delegada Maria Trinta e oito,  prosseguindo:
- Você está muito ferida, por que não foi direto a Pronto Socorro de Virtuália, o PSV?
- Tive que fugir para cá, doutora, senão o Tião me matava; foi ele que me espancou hoje cedo quando saiu do presídio! – falava e chorava a Deolinda e continuava:
- O Sr. Marconi, que me entregava umas encomendas que pedi à quitanda, viu tudo, mas não pode fazer nada, pois o Tião o ameaçou!
-Cabo Liberato, vai buscar o seu Marconi da quitanda para ver se ele confirma! – ordenou a delegada.
Dez minutos depois:
- Aqui está o português, doutora! – falou o polaco.
- Eu vi tudo delegada, o crioulo é covarde e esmurrou a Linda, digo, a Dona Deolinda prá valer!
- Escrivão já digitou a queixa dessa senhora e digite também o que o Sr. Marconi acabou de dizer e dê para eles assinarem! – ordenou a delegada.
Deolinda e Marconi entreolharam-se contendo a satisfação enquanto assinavam a queixa, porém a delegada falou alto e em claras palavras:
- A senhora está detida e o Sr. Marconi também; tranque-os cabo!
- Como detida, eu sou espancada por esse meu marido marginal  e sou eu quem vai presa?
- Deolinda, seu marido foi solto há três dias e me procurou e implorou para que ficasse preso aqui na minha delegacia, me falou que seria isto, exatamente, que aconteceria! Vamos averiguar os casos anteriores!
- Ai, Jisuis! – exclamou baixinho o português.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


O Tesouro e o Lixo

Paraíso – bairro nobre de Virtuália; madrugada de quarta-feira 03h00min.
         - Você vai ficar vendo televisão? Eu vou dormir, pois bebi além da conta! –disse Lurdes ao marido.
         -Vou, tô sem sono!
         Lurdes subiu a escada que leva até ao quarto do casal e entrou no lavabo e começou a se despir das joias e colocá-las em cima do balcão da pia, sobre as páginas de classificados da Folha de Virtuália. Eram as melhores e mais caras das suas joias. Teve que usá-las, pois não poderia faltar na formatura de medicina do filho mais velho de sua “arqui-inimiga” na “higth socielity”. Carregava consigo essa magoa já que seu único e delicado herdeiro formou-se, numa faculdade de quinta categoria, para professor de ciências e dava aula de botânica numa escola do  município.
         Colocou todas as preciosidades sobre o jornal e fez tipo um pacote e o deixou ali mesmo e, às pressas, esvaziou o estomago no bidê; bocejou,  foi para a cama e “apagou”.
         Tilzo, alguns minutos depois, desligou a TV e subiu para a suíte. Parou no lavabo do corredor e comentou consigo:
         -Pô! Que nojeira! A anta emporcalhou todo o lavabo! – pegou o pacote com as joias e jogou no lixinho do lavabo.
         ...
         Dez horas da bela manhã seguinte:
         - Luciana, você já colocou o lixo para fora? O lixeiro vai passar! – gritou Lurdes à empregada.
         - Já sim senhora, Dona Lurdes! Só tinha o lixo do lavabo! – falou Lu, descendente de polonês – uma linda mulher no auge de seus vinte e quatro anos.
         Dorival estava correndo rua acima recolhendo os sacos de lixo e jogando dentro do apropriado caminhão. Em frente à casa do empresário Tilzo, ele pegou um saco transparente – diferente dos de costume – e, viu no seu interior a parte dos classificados da Folha de Virtuália, onde leu: -“ Monte seu próprio negócio -” dizia no cabeçalho do anúncio. Apressado rasgou o saco, antes de atirá-lo dentro do caminhão, e pegou o jornal embolado como se fosse um saquinho e colocou no bolso do uniforme cor de laranja e verde.
         - Pô! Tenho que dar um jeito na minha vida. Sou formado em gastronomia e trabalho há dois anos nesta empresa coletora de lixo, terceirizada, da prefeitura; tenho que montar meu próprio negócio relacionado com alimentos!
         ...
         Passava da meia noite quando Dorival chegou ao seu cubículo, quarto e sala:
         - Hoje ‘tô pregadão! Vou tirar esse uniforme e... ah! os classificados...
Dorival meteu a mão no bolso e pegou o jornal enrolado e ao abri-lo:
         - Que é isto minha gente? É um tesouro? – realmente, eram as joias de Lurdes que Tilzo jogara no lixinho do lavabo.
         - Caramba, parecem ser verdadeiras!– deixou as joias no criado-mudo e correu os olhos nos classificado e focou num anúncio:
“Vendo barato trailer para venda de yakisoba. Motivo: Passei no concurso para gari da prefeitura, na capital.”
         - ‘Taí, amanhã vou dar uma olhada nisto! Quem sabe? Mas, e essas joias, heim? Devem ser bijuterias, com certeza! Vou, antes do trabalho, na casa da Rua Arcanjo Miguel, 484; foi lá que peguei a sacola de lixo com isto dentro!
         Dorival sequer apagou a luz e caiu no sono dos justos.
         ...
         - Bom dia, o senhor é o dono da casa? – perguntou o Dorival.
         - Sou sim, mas não posso atendê-lo agora! Espero a chegada da polícia. Houve um roubo na minha residência e creio que foi a empregada! – disse Tilzo.
         - Serei rápido, senhor! – insistiu o lixeiro.
         - Não insista, senhor! Já ajudo todos os anos a Associação dos Catadores de Lixo! – estupidamente falou o Tilzo.
         ...
         - Mas não roubei nada Dona Lurdes, eu juro! Trabalho para a senhora há dez anos! Por favor, acredite em mim! – chorava Lu.
         - A polícia vai resolver tudo! Ela já está chegando, olha lá! – apontou Lurdes para o início da rua.
         - Sr. Tilzo?
         - Sou eu sargento e a ladra é aquela “POLACA” ali! – disse Tilzo “dedurando” a empregada.
         - Entrem todos na viatura e vamos para o distrito! – ordenou o militar e continuou:
         - Você também, com de uniforme laranja da Virtualurb, serás testemunha, vamos!
         Dorival nem questionou e juntou-se a Tilzo, Lurdes e Luciana que chorava mares de lágrimas.
         - Sr. Tilzo, o senhor é um cidadão importante na cidade e esta sua acusação é muito grave e terás que provar em juízo o que acusas! Entendeu?
         - Sim seu delegado! Ela roubou uma fortuna de quase dois milhões em joias e vai ter que devolver ou provar que não roubou! – disse Tilzo.
         - Isto é o juiz quem vai decidir, no dia da audiência! Por agora é só assinarem onde estão os seus nomes e aguardar a convocação! – disse o Dr. Lauro e continuou:
         - Em casos semelhantes, a este, os acusadores estavam enganados e o juiz estipulou uma pena de 20%, do valor do suposto roubo, a ser pago ao acusado!
         - Seu delegado antes de eu assinar posso falar algo importante? – humildemente falou o Dorival.
         - Vai, fale logo!
         - Ontem eu achei este jornal no lixo enfrente a casa desse senhor – falou tirando do bolso da calça o pacote com as joias – e, quis devolvê-lo, mas este senhor não me deixou falar!
         O delegado abriu o pacote sobre a mesa e perguntou ao casal:
         - São estas as suas joias?
         - Sã...sã...são sim, doutor! A toupeira do meu marido as jogou no lixinho do lavabo ontem à noite! Só pode ter acontecido isso! – falou a Lurdes.
         - Então está resolvido! Não houve roubo coisa nenhuma! Retiras a queixa Sr. Tilzo? – perguntou Dr. Lauro.
         - Eu retiro a queixa e peço desculpas à...
         - Ele pode até retirar a queixa dele seu doutor, mas eu quero registrar a acusação de roubo e racismo! Meu patrão me acusou de ladra e me chamou de polaca, discriminadamente e, eu vou processá-lo! – falou fula da vida a Luciana.
         - E eu serei testemunha de tudo, senhor delegado! – falou Dorival olhando ternamente para Lu.
         - Escrivão comece outro B.O! As joias ficam retidas, pois será parte do inquérito! – ordenou Dr. Lauro.
         - ANTA, paquiderme...! Cochichou Tilzo à Lurdes.
         - ANIMAL, hamsterzinho...! Retrucou Lurdes.