QUASE UM QUILO DE OSSOS
-
Seu Cardin, eu quero três dinheiros de ossos; por favor, separe alguns pedaços
com tutano, tá bão? – falou Lezivo – Lelê para os mais “chegados”-,
mendigo amigo de Biliato, outro da mesma opção de vida.
- Aguarde aí, meu, vou atender essa princesa
que adentra no meu açougue.
-Vai
querer o que Maríndia; como vai a tua patroa, a Dona Lurdes – perguntou
o dono do estabelecimento.
- Ela vai bem! Quero um quilo de contrafilé
sem gordura; a Filó não pode carne gorda. Ela é uma cadela de raça e sou só eu quem
a leva para passear na praça e, principalmente, sou responsável pelas suas
refeições! Hoje é o dia em que ela não come ração, só comerá carne bovina
magra; tem que ser de primeira - Cardin pesou um quilo, cento e vinte
gramas, embrulhou num papel grosso e disse-lhe:
- Aqui está morena; bem pesado e só paga por
um quilo - Maríndia pagou, saiu e desamarrou a Filó do poste em que a
deixou esperando. Filó é uma pastor-alemão de dar medo e com conceituado pedigree.
A moça deixou o pacote junto com sua sacola sobre um banco da praça e foi
correr junto com a cachorra. Cardin acompanhava tudo com seu olhar malicioso de
cobiça até que:
- Pô, cara, e os meus ossos? –
impaciente gritou Lezivo.
- Já ‘tô pesando, Lelê! Cadê o Biliato?
- Ele tá lá na beira da sanga preparando um
rango e só falta eu levar os ossos – respondeu Lezivo e continuou:
- Capricha no peso; quero três dinheiros que
dá quase um quilo!
- Deram, exatamente, setecentos e cinquenta
e três gramas e bem “pesado”; passa a grana!
- Toma – Lezivo jogou os três dinheiros
sobre o balcão e falou:
- Pô, cara, esses ossos você vende quase de
graça prô Gazú do ferro-velho e tá regulando prá nós, os miseráveis?
- Pare de choradeira Lelê, se não quer não
leva!
Lezivo
pegou o pacote e saiu resmungando e, ao passar pela praça, viu o pacote da Filó
em cima do banco da praça e pensou:
- Desaforo, eu e o Bili chupando osso e essa
vira-lata de luxo comendo carne de primeira? – não pensou duas vezes –
aproveitou a ocasião - e trocou os pacotes acelerando os passos para o
“acampamento”, perto da sanga, para estar junto ao amigo de mendicância.
- Onde ocê conseguiu essa carne, Lelê? Isto
é carne de gente rica – falou Biliato.
- Eu consegui mais uns trocados e interei
com o que você me deu; o Cardin, que é meu amigo, deu essa forcinha cooperando
com a gente! – mentiu Lezivo.
O velho
e grande caldeirão de ferro estava no fogo, arranjado, entre duas pilhas de
tijolos. Dentro dele tinha: cenoura, batata inglesa, mandioca, cebola, batata
doce – tudo conseguido na varredura da feira livre – e, agora, pedaços
generosos de carne de primeira; sem falar no tempero especial do Biliato.
Enquanto
isso na praça:
- Filó, cadê você, Filóóóóóóóóóó! –
gritava Maríndia.
- Ô morena, olhe ela lá perto do banco onde
está a sua sacola e está “almoçando” sem te convidar ah!ah!ah!ah! – brincou
Cardin que observava tudo da porta do seu açougue.
De
repente a cadela começou a se contorcer e a ganir esquisito, Miríndia e Cardin
correram até ela:
- Mas quem é que deu esses ossos para ela?
Eu comprei carne de primeira e você me enganou e embrulhou esses ossos no
lugar? Veja o que aconteceu, ela quebrou um dente! – desesperada gritava a
empregada da ranzinza dona Lurdes.
- Peraí, peraí... peraêêêê, eu vendi e te
entreguei foi o contrafilé e... já
sei... já sei, já sei... foi Lelê quem trocou os ossos, que eu vendi prá ele,
pela carne da Filó!
- Vou levar a Filó no veterinário e depois
vou fazer um BO lá na delegacia e, da mesa do Carabina, eu telefono para a
minha patroa – falou a Maríndia e prosseguiu:
- Você é testemunha de tudo, Cardin!
- Tá
bom, morena e vai rápido que a polícia pode pegar os dois pedintes com a boca
na botija, digo, na carne de primeira!
Meia
hora depois na beira da sanga:
- Quer mais Lelê, ainda tem muito; cozinhamos
para seis pessoas – disse Bili.
- Não, eu tô “sastifeito”, amigo, vamos
guardar para o jantar!
Nisto:
- Parem onde estão, vocês estão presos! –
gritou o cabo Azalim acompanhado dos soldados Márcio e Valério.
- O que nós fizemos tenente, nós não... –
Lezivo foi interrompido:
- Isso é desacato, não sou tenente, sou cabo!
Vamos os dois para o camburão e levem esse caldeirão com a comida, ele é a
prova do crime!
Na
delegacia os esperavam: Carabina, dona Lurdes, Maríndia e a medicada e esperta
Filó. E o delegado começou o interrogatório:
- Biliato, eu te conheço há muito tempo e
sei que não és dado a meter as mãos nas coisas alheias, portanto, explique-se:
- Deixa que eu falo, Bili – interrompeu Lezivo
– fui eu quem trocou nossos ossos pela
carne de primeira da cachorra; só eu tenho culpa – terminou por se delatar
e deu, em seguida, um saudável arroto.
- Você está detido, Lelê, ficará um dia
prestando serviço de limpeza aqui na delegacia e você Bili, está liberado, pode
ir embora – delegou Carabina.
- Não delegado eu, indiretamente, fiz parte
desse erro, pois utilizei a carne no ensopado e fico com meu amigo ajudando-o
na limpeza – respondeu Bili.
- Tá bom, pode ficar, mas quero capricho no
serviço!
- E quanto às senhoras eu... – o
delegado foi interrompido:
- Já que o dente da Filó, que quebrou,
aliás, não quebrou, caiu, pois era de leite e não causou nenhuma lesão, estou
satisfeita – falou a dona da cachorra – vamos
embora Maríndia, vem Filô!
Dezenove
horas do mesmo dia:
- Doutor Carabina, podemos esquentar nosso
ensopado no fogareiro da delegacia? Com isso o Estado economiza com a janta!
- Pode Lelê, mas depois limpe a
lambança!
Assim
foi feito e, o cheiro apetitoso do cosido, invadiu a delegacia e todos
compartilharam a iguaria, até o Carabina, que disse:
- Está uma delícia este ensopado... huum...
talvez se tivesse os ossos no lugar da
carne seria mais saboroso!
Todos
caíram em gostosas gargalhadas e o delegado continuou:
- Hoje vocês dois dormem na cela número um,
cujos colchões são novinhos assim como as roupas de cama e, amanhã, depois do
café, vocês podem ir cuidar de suas vidas, mas antes de se deitarem, por favor:
- Tome cada qual, um caprichado banho, ok!
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