ÍNDIO VESGO
Segunda-feira, dez
para as sete horas da manhã, o sacerdote Orestino acorda com a baderna enfrente
a casa paroquial da Igreja Caótica Apostrófica Romana. Levantou-se com uma
enorme dor de cabeça, talvez pelas diversas missas de fim de semana. Era
ressaca, pois ele substituiu o vinho por suco de uva, porém o batizou com a
“purinha” do Nhô Antonio Benzedô. Vestiu a batina preta de andar dentro de
casa, - pois só conseguia dormir nu, isto desde garoto, - para ver o que estava
ocorrendo.
Ao abrir a janela,
panorâmica da sala, viu a molecada do Grupo Escolar Bispo-Cardeal fazendo
alvoroço com um homem seminu dormindo no magistral jardim paroquiano.
Orestino resolveu se
vestir civilmente, pegou um calção e uma camisa, ambos usados, chamou o
indivíduo e fê-lo se vestir. O sujeito era tipo um bugre, tinha os cabelos
pretos, lisos e compridos à altura dos ombros; era estrábico e, tremendamente,
feio:
-
Como te chamas, és índio, senhor?
-
Kukuruku! – respondeu o suposto índio.
A molecada caiu na
risada e o padre sabia o apelido que os meninos dariam ao pobre coitado e falou
alto:
-ÍNDIO
ESTRÁBICO, este é o nome dele na tribo, ouviu gurizada?
– gritou o padre e continuou:
-
Vão para a escola que já são mais de sete horas e vai começar a aula, andem!
A molecada
dispersou. Orestino colocou o indivíduo no seu Jeep e o levou para o distrito
de Restinga Molhada a 12 km ao norte de Vituália e, com isso, “mataria” com uma
só paulada dois javaporcos, ou seja, pegaria uma quantidade de doações na SPMV
(Sub Prefeitura Municipal de Virtuália) e deixaria, longe da paróquia, o Índio
Vesgo:
-
Vou te levar comigo para tomarmos café lá em Restinga, ok, sujeito?
– falou o “caridoso” servo do Senhor.
Dois dias depois...
Na ISEAV (Igreja
Sideral Eva-Angélica de Virtuália), dezoito horas e trinta minutos, de
quarta-feira, sem futebol na televisão. O salão de culto estava lotado quando de
repente:
-
Ooooohhhhh!- exclamação geral que
interrompeu o sermão do pastor Jairo Edson na hora de falar no dízimo, o que o
deixou possesso:
-
O que quer aqui, meu senhor? Parece um garimpeiro depois de um dia chuvoso na
lavra? Obreiros, ponham-no daqui para fora, agora!-
dois obreiros imensos pegaram o pobre homem e o jogaram, literalmente, no meio
da rua. E os fiéis riam e diziam em voz alta, instigados pelo pastor:
-Ó
glória, aleluia, aleluia!
O maltrapilho
levantou-se do meio da rua e sentou-se embaixo da marquise, em frente à ISEAV,
limpando com as costas das mãos, a testa que ferira na queda.
Xerequéia, a
catadora de sucatas nas ruas e terrenos baldios, conhecida por todos, estava
sentada no banco da praça, ali perto, observava tudo enquanto comia parte de um
melão e viu quando o individuo levantou-se e foi até o latão de descarte do
horti-fruti – o maior de Virtuália, - revirou, revirou e só parou quando ouviu:
-
Ei, meu rapaz, aí já não tem mais nada que se aproveite, o que tinha eu já
peguei! Venha até aqui! – era Xerequéia abrindo o
diálogo com o faminto e, este, foi até ela.
-
Nossa cara, você parece um índio! Ah! Já sei, você é o Índio Vesgo que tava
dormindo no jardim da casa paroquial, dias atrás! Olha só esses papaias, essas
bananas e tomates que peguei no latão de descarte, dá para aproveitar mais da
metade, pode se servir; dá para nós dois.
Índio Vesgo não se
fez de rogado e comeu de um jeito que dava nojo e Xerê, senhora muito vivida
com seus setenta e quatro anos, sem se importar, falou:
-
Se você quiser vamos até ao meu cafôfo lá perto da sanga. Vou fazer uma sopa
dos legumes que consegui com pedaços de osso e pelanca que o Carlinhos do
açougue me deu! Você toma a sopa quente e depois dorme no puxadinho, que o Goró
fez prá mim do lado de fora da cabine de caminhão abandonada, onde eu moro.
Amanhã cedo você decide o que fazer!
...
Na manhã seguinte
Xerequéia, que levanta sempre muito cedo, não viu nem sinal do índio e pensou
alto:
-
De onde terá saído aquele pobre sujeito e para onde foi?
–pegou seu carrinho e preparou-se para iniciar a cata diária de recicláveis. Ao
colocar os enormes sacos plásticos vazios dentro do carrinho encontrou um papel
diferente e muito fino, de uns trinta centímetros, com algo escrito em vermelho,
em caligrafia impecavelmente bem elaborada:
“Agradeço o acolhimento, nem tudo está perdido!”
Três pedras amarelas
e pesadas estavam sobre o papel, para que não fosse carregado pelo vento e Xerê
pensou:
-
Caramba, quem seria aquele sujeito? E essas pedras amarelas, pesadas e que
brilham? Será que é... não, não pode ser?! Vou ver com meu amigo de fé, o
Paulinho Goró; talvez ele conheça o Índio Vesgo e saiba o que são essas pedras
que parecem... sei lá, não pode ser! Será?
Que aparência e atitudes teria um anjo que, por ventura,
nos monitorasse?
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