quinta-feira, 30 de agosto de 2012

COISAS DA VIDA


INGRATA 

                    Janete, este era o nome da beldade.
       Paraense, não só de nascimento, mas de genes, também; morena cor de jambo maduro; cabelos lisos e negros – como essa cor têm que ser -, sorriso alvíssimo e regado a uma angelical simpatia. Se existe um narizinho perfeito, este, é o de Nete.
          Às vezes Nonato se pergunta:
       - O que essa obra prima dos deuses da criação viu em mim?  Sou simples ao cubo e com o pior dos defeitos, para a sociedade: sou pobre, aliás, pobre não, paupérrimo!
       Conheceram-se desde os quinze anos e, lá se vão sete anos de namoro.
       Ah! Nete tinha um defeitozinho: - tinha o olho direito estrábico; não era voltado para dentro como querendo ver o que o outro enxergava, era bem pior e mais esquisito, o cristalino e a pupila, estavam sempre voltados para a orelha do lado direito. Quando ela o fitava de frente, tal olho, quase sempre, se fechava. Era esse olho que afastava a rapaziada, menos o Nonato.
    Como Nonato trabalhava em uma firma que confeccionava carimbos diversos e, tal microempresa, prestava serviços na confecção dos carimbos para o pessoal do, na época, INPS, ele conseguiu por simples amizade, tudo para que Nete fizesse uma cirurgia no torto olho direito e  sem gastar um único centavo.
       Sete dias depois, Nete o fitava com os dois olhos abertos e suas lindas pupilas direcionavam-se às dele, mas ele não via mais o brilho que via no, outrora, olho esquerdo arregalado.
       Um mês depois e sem fitá-lo, nos olhos, Janete o dispensou abruptamente, terminando o longínquo namoro; seis meses depois a ingrata lhe mandou o convite de casamento dela com o oculista que colocou seu olho direito e destino no prumo.

VIDA EM VIRTUÁLIA


HÁ ALGO NOS CÉUS   DE VIRTUÁLIA


          Num cômodo, nos fundos da casa de Celso, um fanático por eletrônica:
          - Eu consegui todos os materiais para montarmos  a tua invenção, Celso; faltam só os fios de cobre fininho, os LEDS coloridos e as baterias de lítio modelo CR-2032 de três volts! – disse Sérgio ao amigo.
          - O que faltava, não falta mais; eu tenho tudo! Não sou o “cobra-criada” em consertar eletroeletrônicos em Virtuália “City”? Ah!Ah!Ah!Ah!
- Será que vai dar certo, Sérgio? Já são quase dezoito horas e... ah!... eu trouxe também a carretilha que meu primo me mandou de presente lá de Minas Gerais, de Muriaé, precisamente falando! Coloquei nela trezentos metros de linha de nylon de 10 libras, ou seja, de 0,25 mm, acho que é a espessura que aguentará toda a pressão!
- Vai dar certo sim e vamos causar alvoroço geral! – respondeu o amigo.
Vinte e uma horas e trinta minutos, do mesmo dia, depois do filme de sucesso: Os Invasores, que passava na TV Virtualiana:
- Olhem o que é aquilo no céu! Parece um... um..., mas é mesmo uma nave extraterrestre? – gritou o Paulinho Goró no comando de seu negócio de vender churrasquinho no espeto, em seu ponto, na Praça Bispo-Cardeal.
O tumulto foi geral.
- Chamem o delegado; estamos sendo invadidos! – gritou Juliano Scheiβe, (o carnavalesco, delegado de babacorixá, professor de ciências ocultas e também conhecido como Lisbela – na versão feminina) com a boca cheia de carne, pois degustava o quinto espetinho à moda Goró.
O objeto luminoso não identificado estava a uns oitenta metros de altura e se aproximava rapidamente com suas luzes coloridas.
- Não precisa me chamar, eu já vi e trouxe minha carabina! – falou o delegado Carabina Doze.      
O OVNI se afastou para mais ou menos cem metros e ficou pairando no ar por mais ou menos duas horas. Às vezes ele oscilava para lá e para cá como que obedecendo à brisa noturna. Num dado momento ele começou a se mover rapidamente até sumir lá para os lados do campo de futebol varzeano do Brasinha de Virtuária FC, perto da sanga, lá pelo lado do cafofô da Xerequéia. Carabina Doze foi para lá com uma guarnição e vasculhou tudo e não achou nada.
No outro dia, de novo, logo após a exibição de “Os Invasores”, que passava diariamente no canal de televisão local:
- Olhem, olhem, os aliens voltaram, eles tornaram a voltarem; eles vão estar querendo nos abduzir! – gritava histérica a Cindy Corbélia, na sua gramática ímpar, que àquela hora deixava a prefeitura.
- Dr. Carabina, os ETS voltaram e estão desta vez, do outro lado do centro da cidade! – disse o plantonista ao delegado, que se preparava para ir da delegacia para casa.
- Desta vez eu detono eles, vamos lá cabo Tição! – falou o chefe da lei e da ordem de posse de sua preciosidade inseparável de calibre doze.
Ao chegarem perto da viatura para rumar para onde o objeto voador não identificado pairava, eles notaram que o mesmo descia velozmente para o lado do Rio do Peixe, mais precisamente, onde fica o campo de futebol varzeano do Gauchito FC e, correram para lá.
Lá chegando:
- Nada, delegado, não encontramos nenhum vestígio! – disse o cabo do Ébano.
No início da tarde do dia seguinte às doze horas e trinta minutos; sábado a televisão pôs no ar uma notícia urgente acompanhada de uma entrevista bombástica.
No Restô, hora de muito movimento, pois era dia da famosa feijoada do Delfino, nos aparelhos de televisões ligados:
- Telespectadores, aqui está a senhorita Édila Dron, secretária do afrodescendente, padre Orestino da Igreja Caótica Apostrófica Romana e candidata a prefeita de Virtuália que diz ter sido abduzida pelos ETS visitantes!- falava em tom sensacionalista a Patrícia, repórter e apresentadora.
- Isso mesmo, Patrícia, fui abduzida e levada para outro planeta e lá fui apresentada ao chefe dos alienígenas, eles são muito lindos e de pele morena jambo; foram gentilíssimos comigo e me ensinaram a arte de governar como prefeita! Fiquei lá dois meses na contagem deles, mas na nossa só passaram dois dias!
A repercussão foi instantânea. Só se falava na, já praticamente eleita, Édila. E o povo aumentou o conto dizendo que ela estava grávida do alienígena-chefe. Édila não disse que sim nem que não, ficou “na dela”, já que o amor clandestino seu com o pároco deixou um fruto que crescia no seu ventre.
-Vou matar dois java porcos com um tiro só! – pensava a esperta.
Por duas semanas, ininterruptas, chovia na região da grande Virtuália e o OVNI nunca mais foi visto e o boato corria pelas três cidades fronteiriças de Realópolis, Analogicóplis e Virtuália era um só: Como será a aparência do filho da candidata à prefeita, praticamente eleita, Édila?  Ela era neta de chineses puros e, apesar do corpinho de gueixa era muito, mas muito feia, mesmo. Ela já tinha até escolhido o nome do bebê ao vivo no programa de domingo pela televisão: se menino fosse, seria ETevaldo e se fosse menina seria ETelvira.
Depois de dois domingos de chuva, aquele seria o primeiro da primavera que o céu estava límpido, estrelado e soprava uma brisa agradabilíssima na Praça Bispo-Cardeal.
A venda de espetinho do Goró estava a mil quando alguém gritou:
- Olhem lá no céu? Os ETS voltaram!
De fato, no alto da igreja matriz o OVNI estava parado e com as tradicionais luzes coloridas piscando. O delegado, que estava de plantidão gritou:
- Agora eu pego esses defloradores de donzelas terráqueas! – falou e subiu até o alto da torre da igreja. Fez mira e disse baixinho:
- Eis o meu contato imediato de último grau, eh!eh!eh!eh! - e, puxou o gatilho.
- Acertou! O Carabina Doze acertou o OVNI! – gritou um anônimo.
A maioria das luzes se apagou e ele veio plainando como uma folha que cai e se  esparramou no meio da praça. O delegado, do alto da torre, viu dois rapazotes correndo pelo descampado perto do Grupo Escolar Bispo-Cardeal e na mão de um deles uma carretilha de soltar pandorgas. Desceu as escadarias num pulo só e ao chegar à praça ouviu Goró aos gritos escandalosos:
- Que OVNI coisa nenhuma, delegado, isto era um pipa das grandes com luzes coloridas nas extremidades e ligadas diretas em baterias de calculadoras; deve de ser artimanha do Sérgio dos eletrônicos! Huá! Huá! Huá! Huá! Que ET que nada! Que abdução que nada! A Dona Édila foi abduzida não por um alienígena, mas por um representante fajuto do céu na Terra, huá!huá! huá!

domingo, 26 de agosto de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


*<*<*<*GIBIZINHO *>*>*>*

Gibizinho adentrou em Virtuália perto do Rio do Peixe.  Como andarilho, faz suas andanças margeando os rios, ribeirões, córregos, igarapés, sangas e outros cursos de água que dão vida a essa Terra abençoada.
Dez horas.
 Ele para defronte a um horti-fruti e começa a procurar restos de frutas em um tonel de plástico usado para descartes. Uma voz altiva o interrompe:
- Ei, meu “chapa”! Não vai “me” revirar esse lixo e sujar a frente do meu estabelecimento; venha até aqui que lhe darei algumas frutas!  - gritou Marconi, o dono da sortida quitanda.
- Não, muito obrigado, não quero. Eu só vou pegar algumas frutas muito maduras, que jogastes no lixo, para separar as sementes! Retrucou Gibizinho sorrindo e com duas goiabas, um mamão  papaia e três mangas-ubá apodrecendo nas mãos.
- É cada um que me aparece! Resmungou baixinho o comerciante voltando ao labor de polir as laranjas-pêra da banca.
Gibizinho foi até a pracinha defronte, sentou num dos bancos, separou as partes boas das frutas, selecionou as sementes e as guardou em jornais e murmurou:
- São as frutas, apodrecendo de maduras, que dão boas sementes!
Saboreou com gosto as partes aproveitáveis das mesmas. Terminando o laudo banquete foi até a uma bica de água pública da praça; lavou as mãos, rosto e sorveu grande quantidade do precioso líquido. Encheu uma garrafa de plástico, que ele carrega consigo há pelo menos cinco anos; alojou-a na velha e surrada mochila e seguiu para perto da margem esquerda do Rio do Peixe.
Com seu velho e inseparável canivete, que ele guarda e usa desde os tempos do exército, há pelo menos sessenta anos, começou a abrir covas e sepultar as sementes. Primeiro as de goiaba vermelha; caminhava uns vinte  metros e, repetia a operação com os caroços de manga, as sementes de mamão e assim sucessivamente até que:
- O que está você fazendo, velho? Ah!Ah!Ah! Plantando um pomar? Ah!Ah!Ah!Ah! - zombou dele um dos senhores, bem trajado e à caráter, de um grupo de oito pescadores de fim de semana, já com alto índice etílico, que aproveitavam o domingo.
Sorridente, como sempre, Gibizinho falou:
- Adivinhastes meu senhor! Coopero com a natureza já que a usufruo com minha estadia no planeta! Pensem bem, meus caros: - o universo observável tem um diâmetro perto de cem bilhões de anos-luz com mais de trezentos sextilhões de estrelas; nossa galáxia tem cem mil anos-luz de circunferência,  estimada e com trezentos bilhões de “astros reis” e só neste grãozinho de areia, em que habitamos, a Terra, é que temos certeza existir vida. Então, enquanto eu puder, vou continuar cuidando de manter este pomar.
Todos calaram com os risos e gargalhadas e entreolharam-se pensativos diante da cultura do maltrapilho.
O mendigo seguiu seu caminho de margear os rios, ribeirões, córregos, igarapés, sangas e outros cursos de água plantando pomares. Têm-se provas concretas disto em quase todo o território nacional. É só ir às margens de quaisquer correntezas de água e verificar.
Enquanto existirem os Gibizinhos nosso paraíso persistirá.


VIDA EM VIRTUÁLIA


Bric-à-brac

Naquele escritório de advocacia trabalhavam: Dr. H. Hommel, Dr. E. Schups, as duas filhas advogadas de Hommel, quatro estagiárias e outra advogada, a Bia. A idade das funcionárias regulava vinte e quatro anos. Somente Bia era a menos bonita, mas tinha uma boca e dentes perfeitos e era tão meiga e simpática que sobressaía às demais.
            Eram todas, quase que, com o mesmo manequim e isto deu uma ideia, naquela quarta- feira, à Paula, que tinha o porte da Bia e até os cabelos compridos, encaracolados, até no meio das costas.
            - Vamos fazer um bricabraque de vestuários entre a gente aqui do escritório? Podemos fazer isso nas sextas-feiras, que é o dia da semana em que saímos mais cedo, - às dezessete horas; faremos com as roupas e bijuterias que não gostamos e nem usamos mais, - que tal?
            Todas concordaram com a ideia, principalmente, a Nete que entraria de férias naquele fim de semana. Ficou combinado que seria na próxima sexta-feira e que todas trariam as “mercadorias” para intercâmbio ou venda, se fosse o caso.
            Sexta-feira, dezesseis horas e cinco minutos, instaurou-se a feira livre na copa/cozinha do escritório. Era muito ti-ti-ti. Dr. Hommel achou interessante o que ocorria e falou para uma das filhas:
            - Doutora Nete, tome as chaves para você fechar o escritório e depois você me devolve lá em casa, ok!
            - Está bem pap... oops... Dr. Hommel!
            - Olha Bia, este camisão estampado com cores “berrantes”, tipo tomara que caia, ficaria bem em você; e ele trás sorte, pois foi com ele que há dois meses conheci o arquiteto Lucas Bordignon, meu quase namorado! – falou Paula, a outra filha de Hommel, à colega advogada.
            - Nossa, que arraso de bonita, dou este cinto que pode combinar com aquelas botas que você veio ontem: - Quer?
            - Feito, quero sim!
            E assim o brechó chique foi até às dezessete horas quando Paula falou à Nete:
            - Mana, vamos fechar e ir para casa, esqueceu que tenho que te levar ao aeroporto, lá na capital às dezenove horas, para você embarcar para seus quinze dias de congresso em Lisboa?
            - Ihhh, mana é mesmo; tinha até esquecido disso depois que o Lucas falou que não conseguiu, ou nem quis tentar arranjar, tempo para me acompanhar. Vou ter que ir solteira, ah!ah!ah!
            Sábado, noite agradável de verão. Bia estava radiante com o camisão estampado dando destaque ao lindo e jovial busto, iluminado pelo seu alvíssimo sorriso, esperando em frente a um famoso barzinho na praça principal de Virtuália, pelo taxi chamado. De repente ela deu um grito e arrepiou-se quando recebeu, pelas costas, um beijo molhado no pescoço:
            - Ah, Paula, você não foi para a Europa?!
            Ao virar-se viu o galanteador enrubescer e pedir-lhe milhões de desculpas, acontecera um engano.
            Bia sorrindo muito, entendendo o equivoco, falou:
            - Você é o Lucas não é? Sei disso porque falaste o nome da Paula que é minha colega em advocacia!
            - Desculpa-me outra vez; é que esse camisão, seu porte, os cabelos encaracolados e de costa eu pensei que fosse ela. Você está indo a algum lugar, espera alguém?
            - Estava indo àquele barzinho, mas minha amiga me ligou no celular cancelando nosso “bate-papo”; estava voltando para casa!
            - Estamos, então, sozinhos na noite?! Vamos tomar um chopinho e conversar um pouco! Tem alguma objeção? – falou Lucas.
            - Não, não tenho não! – respondeu Bia.
            A química, a física, a natureza, o acaso, enfim, o universo preparou aquele equivoco.
            Passaram-se quarenta e cinco dias e aquela sexta-feira seria o último dia de aviso prévio de Bia no escritório de advocacia: H. Hommel & Schups, também o último bazar e na segunda-feira, próxima, assumirá o cargo de diretora jurídica da “Construtora Bordignon”.
Bia trouxe todas as roupas que não gostava mais e entre elas, não estava o camisão tomara que caia da sorte, estampado com cores “berrantes” tão esperado pelas colegas.  Menos pela Nete, é claro!

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


Menos um

            - Jurandir venha cá! Pega “efe” dinheiro que está no guarda-comida e vai até a  farmácia comprar pó para fixar a minha dentadura! Anda logo, “rapaf”! -pediu Dona Ruth, sua mãe, enquanto escovava as próteses dentárias.
         Jura pegou os trocados e foi cortando caminho entre os becos da favela até chegar na farmácia mais perto, - na avenida asfaltada.
         Pediu, pagou e saiu com o frágil vidro do produto com os 20 gramas. Ao dobrar uma esquina, trombou de cair estatelado ao chão, com uma gorda e enorme senhora. E, o pior foi que o vidro com o produto, pedido pela sua mãe, caiu no chão e quebrou-se. Jura pegou os cacos do vidro azulado de dentro do saquinho de papel, onde o farmacêutico embalou o pó branco de fixar dentaduras, jogou-os fora e levou só o produto no saquinho:
         - Mamãe vai ficar fula-da-vida, mas vai ter que entender!
         Quando faltava uma viela para chegar ao seu barraco, foi parado pelo Ronaldinho, um negrão de quase dois metros de altura e poderoso no morro, pois era autônomo em negócios ilícitos e, além disto, era um sujeito altamente perverso:
         - O quê que ‘ocê “escondeu” aí, moleque?
         - Não é nada não... é só... (quando Jura foi explicar tomou um safanão que rodopiou e caiu meio tonto).
         Ronaldinho pegou o saquinho da mão do Jura e falou:
          - Ah! Malandro! Então não era nada, né? Olha só que pó branquinho! Deve ser da puríssima! E eu tô fissurado nessa coisa! -meteu o saquinho no bolso e correu para dentro do seu barraco, que ficava perto da casa da Dona Ruth.
         Jura chegou em casa e explicou à sua mãe.  Quando esta foi ralhar com ele ouviram um alarido tremendo. Era a mulher, mãe, filhas e alguns vizinhos do Ronaldinho que gritavam por socorro desesperadamente, pois ele estava morrendo sufocado. E realmente em questão de minutos de agonia, querendo respirar, sem conseguir, - morreu.
         - O que houve com ele Dona Gilda? -perguntou a mãe do Jurandir, que chegara ao local.
         - Eu não entendi... ele chegou com um saquinho de papel de farmácia, despejou um pó branco, em duas carreirinhas, na mesa, e com dois tubinhos de canetas esferográficas, um em cada narina, aspirou tudo de uma só vez! Eu pensei que seria remédio para bronquite, pois ele estava passando mal com a eterna enfermidade!
         Dona Ruth então pensou em silêncio, é claro:
         - Bem feito seu larápio! Aspiraste meu pó fixador de dentaduras. Não sabias que esse pó, quando em contato com a umidade, incha e vira um adesivo pegajoso?Ah!Ah!Ah!
         - Menos um marginal no morro da Caveira de Virtuália! Ah!Ah!Ah!Ah!Ah!

domingo, 19 de agosto de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA E VIDA EM FAMÍLIA


ÁRVORES  E  PLANTAS

                Num domingo desses, de um verão infernal, cochilei e fui para Virtuália passear na parte em que o Ribeirão Limpo deságua no Rio do Peixe. Lá, existem muitas árvores, a maioria, frutíferas plantadas pelas mãos do Criador; lugar bastante agradável e ameno.
            - Mas antes vou fazer uma visitinha ao amigo Nhô!
            Cheguei à casa do meu amigo, abri o portão e percorri os mais de cinquenta metros de um corredor ladeados por várias roseiras e crisântemos e, ao chegar próximo da porta da sala:
            - Nhô, o senhor está em... – nem deu tempo de eu terminar a frase:
            - Ôce já sabi ondi ieu tô, seu Lê, podi aprochegá; vem cá comê umas carambola mais ieu, eh!eh!eh! – sorridente falou alto o Nhô Antônio Benzedô. Ele estava sentado em um banquinho feito, por ele mesmo, de um tronco de uma mangueira, morta há muito tempo:
            - Si assenta nesse ôtru banquim, lembra daquéia manguera ispada qui morreu di veiíce, misifiu? Foi feito déia!
            - Lembro-me sim, Nhô e sei, também, que aqueles pés plantados, margeando o ribeirão, são filhos dela, não é mesmo?
            -É issu memu, meu amigu, aqui as árvi todas tem parentescu, a malhoria são sementi qui ieu vô interranu nu decorrê du tempu!
            - E a horta Nhô, as hortaliças são renovadas através das sementes das que já se foram? – perguntei-lhe
            - São sim e, tamém, de muda, quandu são di muda! Tevi uns tempu, misifiu, qui nasceu um pé di mandioca qui deu umas raiz grandi e, quandu cozida era maciínha e saborosa, só qui iela tinha só duas ramas. Fiz váriu pedaçu das rama e prantei e só um vingo e ieu pensei: - Num vô coiê as raiz dessi pé; vou isperá iêli dá sementi! Argum méis despois peguei as sementi e puis prá secá e despois prantá. Aproveitei as raiz prá cume  cum carne seca. Na sumana seguinti peguei as ramas e prantei de um ladu da roça e du ôtru prantei as sementi.  
            Das ramas nasceru mandioca iguá as da primera pranta; as qui nasceru das sementi, seu Lê, num saiu nenhuma iguá a outra e num era muito boa! Tem ixpricação um trem dêssi?
            - Tem sim, meu amigo! As que nasceram das ramas eram clones do primeiro pé de mandioca, isto é, era o mesmo pé que rebrotou. Já os que nasceram das sementes eram plantas novas, ou seja, plantas parentas do primeiro pé plantado, mas não era o mesmo pé! – expliquei-lhe com conhecimento científico de causa o Nhô respondeu:
- Intão tá, intão seu Lê!
Levantei-me do banquinho e espichei os braços para cima e peguei duas carambolas maduras e lavei na bica d’água que o Nhô canalizou da mina, desde a nascente no Morro do Pilão, dentro de seu sítio. Já tinha reparado antes, mas só agora resolvi perguntar ao meu amigo:
            - Nhô, por que o senhor mantém aquele pé de carambola plantado naquela metade de tambor pintado de branco?
            - Ôce arreparô comu aqueie pé é bunitu? As foias são muito mais Verdi; dê uma oiada nas treis caramboa qui istão amaduranu êie, num é uma belezoca?
            - É sim Nhô, elas são quase o dobro de tamanho das que estão plantadas direto no chão! – admirado falei.
            - Êies foru prantadu nu memu dia há mais de cinco anu, era sementi da mesma fruta qui eu e a falecida Ritinha cumemu juntu! – falou o Nhô.
            - É mesmo, meu amigo?
            - U pé du chão fui ieu qui prantei e u du tambô foi a falecida. A Ritinha cuidava desse pé como a uma fia qui nóis num tivemu. Despois qui éia morreu eu passei a cuidá; todus us dias ieu jogu água e conversu cum éia. Tô sempri riviranu a terra du tambô e colocanu adubu qui ieu façu cum as poda das otras pranta. Éia sempre dá duas ou treis fruta seu Lê, qui são du jeitu que ôce tá venu. Peraí ...  vô coiê as três modi ôce porvá uma déias!
            O Nhô pegou as três carambolas, lavou duas na bica, me deu uma, ficou com outr e a terceira  deixou no tambor, junto ao caule,  dizendo:
            - Essa é da Ritinha, Eh! Eh! Eh! Eh!
            Pensei:
            - Quem sou eu para reprovar este ato?
            - Realmente é muito mais doce que as do outro pé, Nhô, sabe por quê? – perguntei-lhe após ter mastigado uma mordida.
            - Dédi sê pruque ieu tratu êssi pé cum carinhu i cuidadu iguá a uma fia, seu Lê! – respondeu-me.
            -  U ôtru pé ieu nem jogu água, u mundu qui cuida dêie.
            - É isso mesmo Nhô, a planta do tambor centraliza toda a energia na produção de duas a três frutos e, não sei como, deve saber que está confinada no seu vaso. Já a plantada no chão, sabe que é livre para produzir.
            - Será seu Lê? Dédi sê iguá us pai responsávi qui tem dois ou treis fio pruque sabi qui vai podê inducá êies; essa é a família do pé qui a Ritinha prantô. U qui ieu prantei é iguá us pai qui num tão nem aí p’rás coisa e danam a tê us fio num si importanu cum  qui serão dêies despois qui nasci!
            - Boa comparação, meu amigo! – falei e levantei-me pronto para voltar para casa, pois na segunda feira cedo, teria um compromisso inadiável.
            - Ué, ôce já vai si pirulitá, seu Lê!? Inda é cedu!
            - Volto qualquer dia desses a qualquer hora, ok, Nhô?
            - Cê qui sabi, mas quandu ôce vorta vô perpará um sucu daquéias pitanga grandona dus pé qui tem lá pertu du riberão, tá bão, seu Lê?
            - Ok, Nhô! Então thau!
            - Intão inté, intão!
            ...
            -Lê, Lêêê-êê, onde você está? – gritava a vozinha que eu mais adoro no mundo.
            - Estou aqui, Rô, manuseando os gibis antigos que comprei no mês passado no mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará!
            - Olha só, encontrei o pingente de ouro com as três perolazinhas que você me deu quando nasceu nosso terceiro filho, o caçulinha!
            - Que ótimo, onde estava?
           - Caído perto da pitangueira que você plantou naquela metade de tambor pintada de branco há uns cinco anos e que você cuida como se fosse a filha que não tivemos. Fui lá pegar uma pitanga madurinha, que vi lá e deixei a joia cair sem ver. Engraçado, Lê, só tinha três frutinhas como da última vez, você sabe explicar o porquê?


VIDA EM VIRTUÁLIA


OS DOIS CORONÉIS


Num domingo, de um desses feriadões prolongados, dei um cochilo e fui  para Virtuália a fim de pescar no Rio do Peixe em companhia do Nhô Antonio Benzedô. Parecia que ele tinha adivinhado que eu iria aparecer, pois fui chegando ao portão do refúgio dele e, ele já vinha saindo com todos os apetrechos de uma boa pescaria.
            - Eh!Eh!Eh! Ieu sabia que ocê vinha, seu Lê!
            - Tudo bem, Nhô?! Vejo que continuas firme, apesar de pitar esse “paieiro” espanta mosquito?
            - Ieu gostu, seu Lê e u gostu e a regalia de vida! – falou o ancião de mais de 80 anos.
            Na barranca do Rio do Peixe:
            - Já são quaji mêi dia e vou pescá aquele doradão que ieu sortei daquela veiz, alembra seu Lê? Qué fazê uma aposta mais ieu, hehehehehe?
            - Não, Nhô, com o senhor eu perderia na certa!
            Desta vez o meu amigo não trouxe caniço e sim uma linhada com anzol e chumbada tamanho médio. Boleou a linhada por sobre a cabeça e soltou no meio do rio; amarrou a outra ponta num pé de pitanga, que por sinal estava vermelhinho de frutas maduras e, me disse:
            - Vou aperpará uma foguera prá fazê u doradão assadu nu ispetu iguá churrascu; ocê qué um goli de minha pinga amarga, seu Lê? Ocê pode tirá u gostu cum essas pitangas, hehehehehe...
            Que delícia aquele aguardente que ele mesmo faz em um alambique do tempo dos ancestrais dele; e com as ervas que só ele conhecia, dava um sabor incomparável àquela bebida divina.
            - Ocê falô du meu paieiru e agora bibiricanu essa pinga ieu alembrei e vô te contá um causu aqui da nossa região e... êêêpaaa... a linha do meu anzor ispichô: - É o doradão! – gritou o Nhô puxando o maravilhoso douradão, de quase três quilos, de dentro da água e foi me dizendo:
            - Te falei, seu Lê, óia u doradão di vorta! – Nhô limpou o peixe, salgou, espetou e colocou para assar no braseiro da fogueira; em seguida, enquanto assava o peixão ele contou o causo que descrevo com minhas palavras:

            “Década de ’30, século passado, nos arredores de Virtuália.
            Dois coronéis, riquíssimos, irmãos e vizinhos de fazenda, conversavam num sábado à tarde. Há sessenta anos faziam isso regado à pinga pura de engenho e muito, mas muito mesmo, tabaco de primeira.
            - Pois fique sabendo, Luiz, que eu nunca, sequer, fui abordado pela polícia, quiçá pela lei!
            - Nem eu, meu caro Carlos! Um fio de bigode meu vale mais do que nossas duas fazendas juntas. Palavra de macho é palavra!
            - Por falar em nossas fazendas, irmão, o que serão delas? Somos dois idosos solteiros com quase oitenta anos e não constituímos família; ficamos a vida inteira disputando, entre nós dois mesmos, quem conseguiria mais bens nesta Terra de Deus, e agora...
            - Ora, Carlos, mas valeu à pena, tivemos, com essa nossa mania de disputarmos tudo, do bom e do melhor: fortuna, terras, dinheiro e as mulheres mais bonitas, não foi? Eh,eh,eh,eh!
             - Sei lá mano velho, talvez o bom da vida não tenha sido isto! - falou Carlos.
             - Está certo, irmão, até agora estamos empatados em tudo, certo? Vamos, então, por mais graça nas nossas vidas. Vamos desempatar essa “parada” e fazer a derradeira disputa. Eu ponho tudo que tenho numa aposta contra tudo o que você tem. Vamos registrar tudo em cartório. Você passa todos os seus bens para mim e eu passo todos os meus bens para você. Colocamos as papeladas toda dentro de dois envelopes e deixamos tudo com o juiz de Virtuália, o coronel Pauli, nosso amigo em comum. Quem ganhar pega os dois envelopes!
            Sem saber do que se tratava, mas como nunca recusava uma aposta, honraria sua palavra, nem pensou e disse:
            - Nunca fui pobre na vida e a esta altura da mesma, se perder tudo é melhor morrer, mas topo Luiz! É tudo ou nada!
Sete dias se passaram e já estava tudo acertado, como combinado, e no sábado subseqüente, na costumeira, roda de pinga da roça e muito, mas muito tabaco mesmo, Carlos perguntou ao Luiz:
            - Qual é a aposta, mano?
            - Aposto que mato com um tiro na cabeça um fazendeiro rico muito famoso, não vou preso e, sequer, processado!
            - O fumo e o álcool  estão  mexendo com teus miolos, mano! Ficou maluco? Mas vá lá, como vai fazer isso?
            Luiz pegou seu Colt “cavalinho” 45 colocou na própria fronte e falou:
            - Perdeu mano! Eu ganhei a derradeira aposta! - falou e puxou o gatilho.
            A criadagem toda correu para a varanda da fazenda para ver o que acontecera e ouviram o que Carlos dizia:
            - Assim não valeu irmão! Você trapaceou. Ganhou todos os meus bens e como não quero ficar nem um minuto pobre...
            Carlos tirou sua garrucha da cintura e seguiu seu irmão.
            Como a aposta era segredo, o Juiz L.C. Pauli não entendeu nada quando abriu os envelopes e constatou que os irmãos tinham doado os próprios bens um para o outro.”

            Ao terminar a narrativa, Nhô me disse:
            - Sabi, seu Lê, todu dinhêru dus coroné ficô para a nossa cidade. O juiz era um chujeitu honestu e obedecia as lei dos homi e du Criadô! Êie descobriu que, tamém, tinha registrado nu cartório dois decumento antigu dus dois coroné que, despois de mortu, todus us bem seria da cidade!
            Comemos o douradão com farinha do Pará e o Nhô disse-me que tinha que voltar para casa, pois moeria mais cana para renovar o estoque da branquinha e eu voltei de Virtuália.



sábado, 18 de agosto de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


Família Bispo - Cardeal


O subdistrito denominado Cardeal é um dos maiores de Virtuália. Não se emancipou, por manobra do antepenúltimo prefeito da cidade sede. Cardeal era distrito há algum tempo e, alguns cidadãos, queriam transfomá-lo  na cidade Cardeal. O prefeito Bispo- Cardeal  Bisneto apresentou um projeto de Lei que o transformou em subdistrito e tal projeto, aprovado pela Assembléia, virou a Lei - 171. Como subdistrito não pode virar município, daí...
 Habitam-no perto de seis mil almas e a grande maioria descendente de escravos Angolanos. Tal localidade fora há mais de quatro gerações, latifúndio da família de Bispo-Cardeal, o maior coronel da região, desde o século XVIII.
Tal coronel fez uma promessa, à custa de cura de uma doença de sua esposa, de que cada descendente varão, o mais velho, dedicaria sua vida à igreja, mesmo que o herdeiro fosse filho único.
O remanescente da estirpe, filho único, seminarista é o último descendente, pois tal família tinha um defeito genético que fazia com que todos os varões falecessem antes dos trinta anos e, por ironia do destino, só nasciam homens.
Ele, o seminarista da paróquia de Virtuália,  será ordenado padre em duas semanas, isto é, dia primeiro de abril. Como descendente do riquíssimo coronel, o jovem religioso, era dono uma fortuna, em torno, de dez milhões de dólares. Talvez por isso, dedicavam-lhe todas as atenções por parte da igreja. Por exemplo: - a ordenança dos vinte e quatro jovens da poderosa Igreja Caótica Apostrófica  Romana seria na virtuosíssima catedral de Virtuália.
Com verbas generosas do futuro padre, a capela do dito subdistrito,  foi demolida e construíram no local uma psicodélica igreja, uma mansão paroquial e um mega salão de festas. O pároco seria, sem dúvida, o seminarista nato do lugarejo, - é lógico!
Ao completar vinte e quatro anos no dia vinte de fevereiro, último, o simplório, abestado e religioso, em absoluto segredo, deu a ele próprio de presente de aniversário, a doação de toda a sua fortuna para uma ONG sul-americana intitulada: - “Los Sobrevivientes de Nibiru”- que organizava em Puno (Peru), às margens do Lago Titicaca, um local sagrado para abrigar os sobreviventes do planeta chupão.
         Após doar tudo e ficar só com uma túnica e um par de sandálias, foi a um cartório e pediu registro de um Atestado de Pobreza Absoluta.
Ele ficou a última semana, antes da ordenança, no Asilo de Virtuália ajudando no que podia a troco de alimento e pousada.
- Ei, rapaz, tem alguém, lá da arquidiocese da capital, no telefone querendo lhe falar! – disse-lhe uma funcionária do asilo.
-Alô! Sim, sou eu! Tenho que ir aí à capital fazer os votos de pobreza antes da ordenança?! E tenho que levar todas as documentações de todos os meus bens, amanhã? Está bem eu irei! – e desligou o telefone.
O rapaz pensou, pensou e chegou à conclusão de que não teria numerários para ir até a capital e teve uma idéia. Pediu ao asilo alguns trocados para colocar uma carta registrada no correio, mas uma funcionária administrativa, Filomena, fez melhor:
- Deixe comigo, meu irmão, que eu mando a correspondência para a arquidiocese em um envelope timbrado do asilo e em caráter de urgência, em 24 horas estará lá!
Passou-se uma semana e dois dias antes do primeiro de abril, outro telefonema urgentíssimo:
- Sim, ele ainda está aqui, vou chamá-lo:
- Ei, seminarista Bispo, é da arquidiocese e estão querendo falar contigo!
- Está bem Filó, já vou! – disse o seminarista, já com intimidade, largando de lado as ferramentas de jardinagem.
- Alô, sim sou eu! Eu sei que deveria ter ido, mas não tinha dinheiro e pensei que o “Atestado de Pobreza” bastaria! Eu doei tudo o que tinha e tornei-me um paupérrimo e... alô... alô... – desligaram!
E então, meu irmão, quando passará a ser chamado de PADRE BISPO-CARDEAL da Igreja Caótica Apostrófica  Romana? – indagou-lhe a Filomena sem obter resposta.
No dia 1º de Abril não teve ordenança em Vituália e o seminarista foi convidado a deixar o asilo, pois só dava despesas e passou a ser conhecido como:
O tataraneto de Bispo - Cardeal, que não chegou a ser padre. Aquele que quebrou a promessa ou maldição do seu ancestral.
Nos dias de hoje, Bispo é obreiro da IEAVS (Igreja Eva-Angélica Sideral de Virtuália) e, o Pastor Jairo Edson lhe garante que vai conseguir, de volta, a grande fortuna doada.
- Tem minha palavra Bispo, a palavra de um servo da Divindade! -gabava-se o ladino pastor.


        


sexta-feira, 17 de agosto de 2012

VIDA EM VIRTUÁLIA


ÍNDIO VESGO


Segunda-feira, dez para as sete horas da manhã, o sacerdote Orestino acorda com a baderna enfrente a casa paroquial da Igreja Caótica Apostrófica Romana. Levantou-se com uma enorme dor de cabeça, talvez pelas diversas missas de fim de semana. Era ressaca, pois ele substituiu o vinho por suco de uva, porém o batizou com a “purinha” do Nhô Antonio Benzedô. Vestiu a batina preta de andar dentro de casa, - pois só conseguia dormir nu, isto desde garoto, - para ver o que estava ocorrendo.
Ao abrir a janela, panorâmica da sala, viu a molecada do Grupo Escolar Bispo-Cardeal fazendo alvoroço com um homem seminu dormindo no magistral jardim paroquiano.
Orestino resolveu se vestir civilmente, pegou um calção e uma camisa, ambos usados, chamou o indivíduo e fê-lo se vestir. O sujeito era tipo um bugre, tinha os cabelos pretos, lisos e compridos à altura dos ombros; era estrábico e, tremendamente, feio:
- Como te chamas, és índio, senhor?
- Kukuruku! – respondeu o suposto índio.
A molecada caiu na risada e o padre sabia o apelido que os meninos dariam ao pobre coitado e falou alto:
-ÍNDIO ESTRÁBICO, este é o nome dele na tribo, ouviu gurizada? – gritou o padre e continuou:
- Vão para a escola que já são mais de sete horas e vai começar a aula, andem!
A molecada dispersou. Orestino colocou o indivíduo no seu Jeep e o levou para o distrito de Restinga Molhada a 12 km ao norte de Vituália e, com isso, “mataria” com uma só paulada dois javaporcos, ou seja, pegaria uma quantidade de doações na SPMV (Sub Prefeitura Municipal de Virtuália) e deixaria, longe da paróquia, o Índio Vesgo:
- Vou te levar comigo para tomarmos café lá em Restinga, ok, sujeito? – falou o “caridoso” servo do Senhor.
Dois dias depois...
Na ISEAV (Igreja Sideral Eva-Angélica de Virtuália), dezoito horas e trinta minutos, de quarta-feira, sem futebol na televisão. O salão de culto estava lotado quando de repente:
- Ooooohhhhh!- exclamação geral que interrompeu o sermão do pastor Jairo Edson na hora de falar no dízimo, o que o deixou possesso:
- O que quer aqui, meu senhor? Parece um garimpeiro depois de um dia chuvoso na lavra? Obreiros, ponham-no daqui para fora, agora!- dois obreiros imensos pegaram o pobre homem e o jogaram, literalmente, no meio da rua. E os fiéis riam e diziam em voz alta, instigados pelo pastor:
-Ó glória, aleluia, aleluia!
O maltrapilho levantou-se do meio da rua e sentou-se embaixo da marquise, em frente à ISEAV, limpando com as costas das mãos, a testa que ferira na queda.
Xerequéia, a catadora de sucatas nas ruas e terrenos baldios, conhecida por todos, estava sentada no banco da praça, ali perto, observava tudo enquanto comia parte de um melão e viu quando o individuo levantou-se e foi até o latão de descarte do horti-fruti – o maior de Virtuália, - revirou, revirou e só parou quando ouviu:
- Ei, meu rapaz, aí já não tem mais nada que se aproveite, o que tinha eu já peguei! Venha até aqui! – era Xerequéia abrindo o diálogo com o faminto e, este, foi até ela.
- Nossa cara, você parece um índio! Ah! Já sei, você é o Índio Vesgo que tava dormindo no jardim da casa paroquial, dias atrás! Olha só esses papaias, essas bananas e tomates que peguei no latão de descarte, dá para aproveitar mais da metade, pode se servir; dá para nós dois.
Índio Vesgo não se fez de rogado e comeu de um jeito que dava nojo e Xerê, senhora muito vivida com seus setenta e quatro anos, sem se importar, falou:
- Se você quiser vamos até ao meu cafôfo lá perto da sanga. Vou fazer uma sopa dos legumes que consegui com pedaços de osso e pelanca que o Carlinhos do açougue me deu! Você toma a sopa quente e depois dorme no puxadinho, que o Goró fez prá mim do lado de fora da cabine de caminhão abandonada, onde eu moro. Amanhã cedo você decide o que fazer!
...
Na manhã seguinte Xerequéia, que levanta sempre muito cedo, não viu nem sinal do índio e pensou alto:
- De onde terá saído aquele pobre sujeito e para onde foi? –pegou seu carrinho e preparou-se para iniciar a cata diária de recicláveis. Ao colocar os enormes sacos plásticos vazios dentro do carrinho encontrou um papel diferente e muito fino, de uns trinta centímetros, com algo escrito em vermelho, em caligrafia impecavelmente bem elaborada:
Agradeço o acolhimento, nem tudo está perdido!
Três pedras amarelas e pesadas estavam sobre o papel, para que não fosse carregado pelo vento e Xerê pensou:
- Caramba, quem seria aquele sujeito? E essas pedras amarelas, pesadas e que brilham? Será que é... não, não pode ser?! Vou ver com meu amigo de fé, o Paulinho Goró; talvez ele conheça o Índio Vesgo e saiba o que são essas pedras que parecem... sei lá, não pode ser! Será?

Que aparência e atitudes teria um anjo que, por ventura, nos monitorasse?