Peripécias de
MOLEQUES
Capítulo I :
“UM XERIFE DE VERDADE”
“Naqueles últimos três anos nossa família
morava em Muriaé-MG, cidade pequena na zona da mata mineira. Pacata, limpa,
organizada e não muito longe dos grandes centros como a cidade do Rio de
Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. No verão as tardes muriaeenses se
arrastavam mornas e lentas. Em algumas dessas tardes, eu fiava sentado em
frente da casa, logo abaixo da janela da sala, numa pedra, ali passava bons
momentos olhando as nuvens volumosas e brancas mudando suas formas, num céu
extremamente azul. No jardim, borboletas multicoloridas disputavam, em
desvantagens, o néctar das flores de diversos tipos e cores com os ariscos
beija-flores. Era um jardim desorganizado que minha mãe, carinhosamente,
cuidava, mas para ela o importante era a quantidade de flores, cores e
perfumes. Esse jardim era separado ao meio por uma desgastada calçada de
cimento que iniciava no portão da frente e ia até perto da porta da sala; uma
das minhas irmãs a varria todas as tardes, mantendo-a sempre limpa. A parede,
da frente da casa, havia passado por várias pinturas com cores diferentes, - já
fora avermelhada, rosa, branca, amarela, verde, azul clara e até anil. À medida
que o tempo foi passando e, a casa envelhecendo, as pinturas descascavam
desordenadamente, dando um efeito multicolorido por toda a parede e, em meio ao
jardim florido... imaginem a beleza?
Éramos como ciganos, visto que vosso avô era funcionário de uma empresa construtora de estradas, aeroportos, portos
e outras obras de engenharia pesada. Viajamos e conhecemos o país inteiro por
conta das transferências de meu pai. Terminava uma obra e ele já era mandado
para outra. Essas obras duravam em média de três a seis anos. Ele, como também
a empresa, fazia questão de que a família o acompanhasse. Cada transferência e
viagem era uma aventura. Deixávamos amizades e saudades por onde morávamos, mas
foi nessa cidade mineira que vivi os quatro melhores anos de minha infância.
Era tempo de férias escolar de fim
de ano. O compromisso e a aflição, em concluir mais um ano letivo, acabaram,
pelo menos, durante uns dois ou três meses, quando então tudo reiniciaria com
novidades.
Os dias de férias começavam com a
molecada se reunindo em um restrito descampado, três quadras da minha casa,
perto do rio, onde, até dois meses antes daquelas férias, era o campinho de
futebol e, embaixo de uma frondosa árvore, que nunca dava fruto e até hoje não
sei o nome, sentávamos e era escolhido, no par ou impar, o tipo de brincadeira.”
- Mas pai, por que não tinha mais o
campinho de futebol? –
perguntou Mateus que gosta muito de futebol.
- Vão prestando
atenção na minha narrativa que vocês vão entender ok?
- OK, pai, continua – respondi.
“Um senhor, de nome Agenor, que se
dizia dono do terreno baldio, arrancara as goleiras, revirara a terra toda do
campinho, cercara com arame farpado e fez uma plantação de mandioca no local. O
espaço restante dava apenas para nos reunirmos e brincar de ‘João-bobo’ com a
bola de couro oficial nº 5 que o Angelim, um amigo, que era vesgo, ganhou de
sua madrinha no seu recente aniversário.
Um dia, quando os pés de mandioca já
estavam com mais ou menos vinte e cinco centímetros de altura, nós brincávamos
ao lado deste mandiocal e a bola caiu dentro do terreno. Por azar, o Sr. Agenor
estava lá observando sua plantação e maldosamente pegou a bola e a estourou com
seu canivete de picar fumo devolvendo-a para o Angelim dizendo;
-
Se vocês continuarem a jogar bola aqui perto do meu mandiocal eu vou falar com
o pai de cada um de vocês!
O Angelim quase chorou e o Ciro,
depois que o seu Agenor foi embora, nos falou: - Pode deixar, ele vai pagar pelo
que fez com a bola e, vai para caro!
Os dias foram
passando, o mandiocal crescendo a olhos vistos e o seu Agenor passava todos os
dias, no horário do almoço dele, em frente à sua roça de mandioca e ficava
olhando, mas de longe:
- São os olhos do dono que fazem a
plantação crescer vistosa e bonita –
dizia ele aos vizinhos do mandiocal.
Quando os pés de mandioca estavam no
ponto de serem colhidos, a nossa turma de moleques, sob o comando do Ciro, se
reuniu no início de uma noite, por volta das dezenove horas, ele perguntou:
- Cada um trouxe dois sacos vazios de
batatas ou farinha?
- Sim – respondemos todos quase ao mesmo tempo.
-
Ué, Lê, você veio, o seu papai deixou? –
brincou Ciro comigo.
-
Ele está viajando e só volta daqui a cinco dias – respondi de pronto.
Entramos sorrateiramente por
debaixo do arame farpado e paramos bem no meio do mandiocal. Fomos arrancando
os pés de mandioca do terreno fofo, separando as raízes e colocando nos sacos.
Fizemos isso dois dias seguido, porém só colhemos os pés que estavam no centro
do mandiocal, obedecendo a um círculo. Nas laterais não mexemos em nada.
Carregamos os sacos para os fundos do terreno da casa do Ciro e ele toda manhã,
durante quatro dias, ia a uma feira livre que tinha num bairro distante do
nosso e lá as vendia por um preço que todos queriam comprar. Para isso, ele colocou uma caixa de madeira
na traseira de sua bicicleta, onde levava as mandiocas. A demanda era tanta que
ele fazia cinco viagens por manhã, da casa dele à feira livre.
Com o dinheiro arrecadado com as vendas
das mandiocas, compramos duas bolas novas, sendo uma para o nosso time e outra
para o Angelim e ainda, doze camisas baratas, sendo seis vermelhas e seis
azuis. Ainda sobraram uns trocados que deu para comprarmos dois bolinhos de
aipim com carne seca para cada um de nós. Todos chamavam de bolinho de aipim
porque era uma receita carioca e foi dona Ainda, tia do Minéis, quem teve a
ideia de vendê-los pelas ruas de Muriaé – nas portas das escolas, nas praças e
ponto de ônibus.”
- Só um minuto, pai! Aipim,
mandioca e macaxeira é a mesma coisa, certo?
- São sim, Thiago, cada região
dá-se um nome!
“Esses bolinhos eram uma delícia de
iguaria. O Minéis e mais quatro meninos os vendiam através de uma rota
programada pela dona Aída. Ele e os garotos não venciam a demanda.
Infelizmente o Minéis e os outros vendedores perderam o emprego com a morte da
tia quituteira dele. Com ela morreram todos os segredos dos seus salgadinhos. A
irmã, mãe do Minéis, tentou fazer os bolinhos, mas só duraram duas produções, ou
seja, dois dias.
Não jogamos mais bola lá perto do mandiocal.
Ficávamos embaixo da árvore frondosa conversando e inventando brincadeiras. Numa
bela manhã de sábado, o seu Agenor encostou uma caminhonete do lado do terreno
e junto com dois outros homens começaram a arrancar os pés de mandioca. Alguns
dos moleques quiseram sair fora e o Ciro falou:
-
Onde é que vocês vão? Agora que é o melhor da história!
De repente um dos homens do seu
Agenor gritou a ele:
-
Ei, Agenor, aqui no meio do mandiocal não tem mais pé nenhum, já foram todos
colhidos!
O seu Agenor olhou para nós e não
falou nada. Despistamos muito bem, não dando atenção ao que eles faziam no
mandiocal. Arrancaram o que restou e levaram tudo em duas viagens, inclusive as
ramas, folhas e mais a cerca.
O seu Agenor, na semana seguinte,
cercou outro lote grande do outro lado do rio e plantou outro mandiocal. Ele
vivia disto; via um terreno baldio e logo entrava em acordo com o dono para
dividirem uma plantação de mandioca ou milho. O proprietário entrava com a
terra, ele com mão de obra, pedaços de caule ou sementes para o plantio e a produção era dividida por dois”
- Pai, posso fazer uma pergunta?
- Claro, Thiago, faça?
- Mandioca tem semente?
- Claro que tem, mas preferem
clonar, ou seja, plantar um pedaço do caule de um pé selecionado. Se utilizar a
semente nascerá um pé de mandioca com características diferentes da matriz da
semente e as raízes podem nascer com pouca qualidade para a venda. Porém, se
plantarmos um pedaço do caule, de um pé de mandioca, que dava raízes ótimas,
nascerão raízes ótimas, entenderam?
- Sim, pai, pode continuar – falei ao meu velho.
- Um detalhe importante é que
nenhum dos moleques da turminha levou, sequer, um pedaço de mandioca para casa.
Isto foi um trato de cavalheiros entre nós o qual sempre funcionava!
“Duas semanas depois, o campinho
estava de novo como antes: terra batida e as goleiras, formadas por dois
pedaços de caule de pé de mandioca de cada lado. Só que agora os times jogavam
de camisetas, um de azul e o outro de vermelho e a bola... Ah! Era de couro,
novinha número cinco e oficial.”
- Caramba pai, essa turminha era
unida, hein! –
falou o Felipe.
- E como era, meus filhos, existem
poucas coisas melhores do que uma amizade verdadeira, mas continuando...
“Naquele final de tarde calorenta a
brincadeira seria xerife e foras da lei. Pela quantidade de moleques, seriam
três xerifes e seis foras da lei. Neste tipo de brincadeira, tinha um pique que
era a árvore e, no chão, ao redor do seu caule, fizemos um círculo mais ou
menos do tamanho de sua copa e, seria ali a ‘cadeia’; nela ficava um xerife no
posto de guarda dos capturados. Um dos xerifes contava até sessenta e depois
dois deles saíam à cata dos ‘bandidos’, estes, por sua vez, tinham que se
considerar capturados apenas com o tocar de uma das mãos de um dos xerifes, em
qualquer parte de seus corpos.
A brincadeira começou animada com a
meninada correndo pelas ruas e terrenos baldios. As horas foram passando, o sol
já tinha baixado lá longe, atrás de uns morros e só faltava, mesmo, eu para ser
‘preso’. Dois dos xerifes ficaram de guarda e um saiu a me procurar, pois se
seu passasse pela ‘cadeia’ e tocasse em um dos ‘bandidos’, todos os presos
poderiam fugir e acabava a brincadeira com a vitória dos foras da lei.
Eu corria às soltas, com a camisa
desabotoada, pelas ruas de paralelepípedos da querida Muriaé. Estava tão
absolto, com uma sensação de liberdade tão grande, que nem dava conta do
adiantado do horário. Eu sempre me preocupava, pois o avô de vocês era rígido e
queria que todos os cinco filhos estivessem em casa quando ele chegasse do
serviço, caso contrário sofríamos castigos que variavam desde: - ficar sem sair ao
portão de um a três dias – era de casa à escola e vice-versa -, até as temidas
palmadas (estas nós nunca experimentamos).
Eu notei que nenhum dos xerifes se
aproximava de mim e resolvi:
- E agora ou nunca; vou correr e
soltar os outros companheiros! Apertei o
passo e, ao dobrar uma esquina, sempre olhando para trás, trombei, de cair
estatelado ao chão, com um homem grande e cheirando à óleo diesel e à graxa. Ao
levantar o olhar para ver com quem me chocara, vi que era o avô de vocês com o
semblante mais sério do que de costume e, pela quantidade de ira que seus olhos
dardejavam, dava para ver que ele não tivera um bom dia lá no trabalho.
-
Já para casa – disse meu pai meio
preocupado com o tombo que levei.
Fui à frente cabisbaixo e meu pai
logo atrás, sem nada mais dizer. Foram cerca de cem metros de percurso, mas que pareciam quilômetros. Torcia, de cruzar os dedos das mãos, para quando
chegássemos em casa, minha mãe nos esperasse. Ela não permitia de maneira
alguma que o avô de vocês encostasse um só dedo nos filhos. E ele, um
brutamonte de mãos grandes, braços fortes e olhar sério e carrancudo, se
dobrava ante a ira da frágil criatura quando via um dos filhos ameaçado. Minha
mãe sempre foi nosso refúgio, o porto seguro.
-
Já prô banho, Lê! E não demore debaixo
do chuveiro – disse ela com voz
autoritária.
Meu pai balançou a cabeça e apenas deu meio sorriso para a minha mãe. Eu estava
salvo. Mas a verdade seja dita, meu pai nunca encostou um dedo sequer em nenhum
de seus filhos. Só um olhar era como um potente murro.
Por volta das dezenove horas, alguém
chamou por minha mãe:
-
Dona Rosa, o Lê já chegou em casa –
perguntava o Ciro, um dos xerifes da brincadeira e estava ofegante e suado.
Pelo visto meus companheiros não viram a minha trombada com meu pai e a brincadeira ainda
continuava:
- Oi, Ciro, tudo bem? Ele já chegou e escoltado por um
xerife de verdade – respondeu minha mãe
com um grande sorriso.
Meu
pai terminou a narrativa dando gostosas e saudosas gargalhadas interrompidas
pela voz estridente do meu irmão do meio, o Felipe:
- Paiê, põe aquele filme preto e
branco, de selva que o senhor trouxe lá da locadora para a gente assistir!
- Não põe não, pai! Conta outra
história de quando o senhor era menino!
Concordando
com meu pedido, Mateus o caçulinha, deu força dizendo:
- É mesmo pai, vai, conta aí!
- Está bem, meninos eu conto...
Continua no Capítulo II:
"DONA MARIA PERERECA"
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