segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

PROJETO DE UM LIVRO - Cap. - I




Peripécias de 
MOLEQUES



Capítulo   I :
“UM XERIFE DE VERDADE”



Naqueles últimos três anos nossa família morava em Muriaé-MG, cidade pequena na zona da mata mineira. Pacata, limpa, organizada e não muito longe dos grandes centros como a cidade do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. No verão as tardes muriaeenses se arrastavam mornas e lentas. Em algumas dessas tardes, eu fiava sentado em frente da casa, logo abaixo da janela da sala, numa pedra, ali passava bons momentos olhando as nuvens volumosas e brancas mudando suas formas, num céu extremamente azul. No jardim, borboletas multicoloridas disputavam, em desvantagens, o néctar das flores de diversos tipos e cores com os ariscos beija-flores. Era um jardim desorganizado que minha mãe, carinhosamente, cuidava, mas para ela o importante era a quantidade de flores, cores e perfumes. Esse jardim era separado ao meio por uma desgastada calçada de cimento que iniciava no portão da frente e ia até perto da porta da sala; uma das minhas irmãs a varria todas as tardes, mantendo-a sempre limpa. A parede, da frente da casa, havia passado por várias pinturas com cores diferentes, - já fora avermelhada, rosa, branca, amarela, verde, azul clara e até anil. À medida que o tempo foi passando e, a casa envelhecendo, as pinturas descascavam desordenadamente, dando um efeito multicolorido por toda a parede e, em meio ao jardim florido... imaginem a beleza?
            Éramos como ciganos, visto que vosso avô era funcionário de uma empresa construtora de estradas, aeroportos, portos e outras obras de engenharia pesada. Viajamos e conhecemos o país inteiro por conta das transferências de meu pai. Terminava uma obra e ele já era mandado para outra. Essas obras duravam em média de três a seis anos. Ele, como também a empresa, fazia questão de que a família o acompanhasse. Cada transferência e viagem era uma aventura. Deixávamos amizades e saudades por onde morávamos, mas foi nessa cidade mineira que vivi os quatro melhores anos de minha infância.
            Era tempo de férias escolar de fim de ano. O compromisso e a aflição, em concluir mais um ano letivo, acabaram, pelo menos, durante uns dois ou três meses, quando então tudo reiniciaria com novidades.
            Os dias de férias começavam com a molecada se reunindo em um restrito descampado, três quadras da minha casa, perto do rio, onde, até dois meses antes daquelas férias, era o campinho de futebol e, embaixo de uma frondosa árvore, que nunca dava fruto e até hoje não sei o nome, sentávamos e era escolhido, no par ou impar, o tipo de brincadeira.”

            - Mas pai, por que não tinha mais o campinho de futebol? – perguntou Mateus que gosta muito de futebol.
         - Vão prestando atenção na minha narrativa que vocês vão entender ok?
         - OK, pai, continua – respondi.

         “Um senhor, de nome Agenor, que se dizia dono   do terreno baldio, arrancara as goleiras, revirara a terra toda do campinho, cercara com arame farpado e fez uma plantação de mandioca no local. O espaço restante dava apenas para nos reunirmos e brincar de ‘João-bobo’ com a bola de couro oficial nº 5 que o Angelim, um amigo, que era vesgo, ganhou de sua madrinha no seu recente aniversário.
            Um dia, quando os pés de mandioca já estavam com mais ou menos vinte e cinco centímetros de altura, nós brincávamos ao lado deste mandiocal e a bola caiu dentro do terreno. Por azar, o Sr. Agenor estava lá observando sua plantação e maldosamente pegou a bola e a estourou com seu canivete de picar fumo devolvendo-a para o Angelim dizendo;
            - Se vocês continuarem a jogar bola aqui perto do meu mandiocal eu vou falar com o pai de cada um de vocês!
            O Angelim quase chorou e o Ciro, depois que o seu Agenor foi embora, nos falou: - Pode deixar, ele vai pagar pelo que fez com a bola e, vai para caro!
            Os dias foram passando, o mandiocal crescendo a olhos vistos e o seu Agenor passava todos os dias, no horário do almoço dele, em frente à sua roça de mandioca e ficava olhando, mas de longe:
            - São os olhos do dono que fazem a plantação crescer vistosa e bonita – dizia ele aos vizinhos do mandiocal.
            Quando os pés de mandioca estavam no ponto de serem colhidos, a nossa turma de moleques, sob o comando do Ciro, se reuniu no início de uma noite, por volta das dezenove horas, ele perguntou:
            - Cada um trouxe dois sacos vazios de batatas ou farinha?
            - Sim – respondemos todos quase ao mesmo tempo.
            - Ué, Lê, você veio, o seu papai deixou? – brincou Ciro comigo.
- Ele está viajando e só volta daqui a cinco dias – respondi de pronto.
Entramos sorrateiramente por debaixo do arame farpado e paramos bem no meio do mandiocal. Fomos arrancando os pés de mandioca do terreno fofo, separando as raízes e colocando nos sacos. Fizemos isso dois dias seguido, porém só colhemos os pés que estavam no centro do mandiocal, obedecendo a um círculo. Nas laterais não mexemos em nada. Carregamos os sacos para os fundos do terreno da casa do Ciro e ele toda manhã, durante quatro dias, ia a uma feira livre que tinha num bairro distante do nosso e lá as vendia por um preço que todos queriam comprar.  Para isso, ele colocou uma caixa de madeira na traseira de sua bicicleta, onde levava as mandiocas. A demanda era tanta que ele fazia cinco viagens por manhã, da casa dele à feira livre.
Com o dinheiro arrecadado com as vendas das mandiocas, compramos duas bolas novas, sendo uma para o nosso time e outra para o Angelim e ainda, doze camisas baratas, sendo seis vermelhas e seis azuis. Ainda sobraram uns trocados que deu para comprarmos dois bolinhos de aipim com carne seca para cada um de nós. Todos chamavam de bolinho de aipim porque era uma receita carioca e foi dona Ainda, tia do Minéis, quem teve a ideia de vendê-los pelas ruas de Muriaé – nas portas das escolas, nas praças e ponto de ônibus.”

- Só um minuto, pai! Aipim, mandioca e macaxeira é a mesma coisa, certo?
- São sim, Thiago, cada região dá-se um nome!

“Esses bolinhos eram uma delícia de iguaria. O Minéis e mais quatro meninos os vendiam através de uma rota programada pela dona Aída. Ele e os garotos não venciam a demanda. Infelizmente o Minéis e os outros vendedores perderam o emprego com a morte da tia quituteira dele. Com ela morreram todos os segredos dos seus salgadinhos. A irmã, mãe do Minéis, tentou fazer os bolinhos, mas só duraram duas produções, ou seja, dois dias.
Não jogamos mais bola lá perto do mandiocal. Ficávamos embaixo da árvore frondosa conversando e inventando brincadeiras. Numa bela manhã de sábado, o seu Agenor encostou uma caminhonete do lado do terreno e junto com dois outros homens começaram a arrancar os pés de mandioca. Alguns dos moleques quiseram sair fora e o Ciro falou:
- Onde é que vocês vão? Agora que é o melhor da história!
De repente um dos homens do seu Agenor gritou a ele:
- Ei, Agenor, aqui no meio do mandiocal não tem mais pé nenhum, já foram todos colhidos!
O seu Agenor olhou para nós e não falou nada. Despistamos muito bem, não dando atenção ao que eles faziam no mandiocal. Arrancaram o que restou e levaram tudo em duas viagens, inclusive as ramas, folhas e mais a cerca.
O seu Agenor, na semana seguinte, cercou outro lote grande do outro lado do rio e plantou outro mandiocal. Ele vivia disto; via um terreno baldio e logo entrava em acordo com o dono para dividirem uma plantação de mandioca ou milho. O proprietário entrava com a terra,  ele com mão de obra,  pedaços de caule ou sementes para o plantio e a produção era dividida por dois”

- Pai, posso fazer uma pergunta?
- Claro, Thiago, faça?
- Mandioca tem semente?
- Claro que tem, mas preferem clonar, ou seja, plantar um pedaço do caule de um pé selecionado. Se utilizar a semente nascerá um pé de mandioca com características diferentes da matriz da semente e as raízes podem nascer com pouca qualidade para a venda. Porém, se plantarmos um pedaço do caule, de um pé de mandioca, que dava raízes ótimas, nascerão raízes ótimas, entenderam?
- Sim, pai, pode continuar – falei ao meu velho.
- Um detalhe importante é que nenhum dos moleques da turminha levou, sequer, um pedaço de mandioca para casa. Isto foi um trato de cavalheiros entre nós o qual  sempre funcionava!
“Duas semanas depois, o campinho estava de novo como antes: terra batida e as goleiras, formadas por dois pedaços de caule de pé de mandioca de cada lado. Só que agora os times jogavam de camisetas, um de azul e o outro de vermelho e a bola... Ah! Era de couro, novinha número cinco e oficial.”

- Caramba pai, essa turminha era unida, hein! – falou o Felipe.
- E como era, meus filhos, existem poucas coisas melhores do que uma amizade verdadeira, mas continuando...

“Naquele final de tarde calorenta a brincadeira seria xerife e foras da lei. Pela quantidade de moleques, seriam três xerifes e seis foras da lei. Neste tipo de brincadeira, tinha um pique que era a árvore e, no chão, ao redor do seu caule, fizemos um círculo mais ou menos do tamanho de sua copa e, seria ali a ‘cadeia’; nela ficava um xerife no posto de guarda dos capturados. Um dos xerifes contava até sessenta e depois dois deles saíam à cata dos ‘bandidos’, estes, por sua vez, tinham que se considerar capturados apenas com o tocar de uma das mãos de um dos xerifes, em qualquer parte de seus corpos.
A brincadeira começou animada com a meninada correndo pelas ruas e terrenos baldios. As horas foram passando, o sol já tinha baixado lá longe, atrás de uns morros e só faltava, mesmo, eu para ser ‘preso’. Dois dos xerifes ficaram de guarda e um saiu a me procurar, pois se seu passasse pela ‘cadeia’ e tocasse em um dos ‘bandidos’, todos os presos poderiam fugir e acabava a brincadeira com a vitória dos foras da lei.
Eu corria às soltas, com a camisa desabotoada, pelas ruas de paralelepípedos da querida Muriaé. Estava tão absolto, com uma sensação de liberdade tão grande, que nem dava conta do adiantado do horário. Eu sempre me preocupava, pois o avô de vocês era rígido e queria que todos os cinco filhos estivessem em casa quando ele chegasse do serviço, caso contrário sofríamos castigos que variavam desde: - ficar sem sair ao portão de um a três dias – era de casa à escola e vice-versa -, até as temidas palmadas (estas nós nunca experimentamos).
Eu notei que nenhum dos xerifes se aproximava de mim e resolvi:
- E agora ou nunca; vou correr e soltar os outros companheiros! Apertei o passo e, ao dobrar uma esquina, sempre olhando para trás, trombei, de cair estatelado ao chão, com um homem grande e cheirando à  óleo diesel e à graxa. Ao levantar o olhar para ver com quem me chocara, vi que era o avô de vocês com o semblante mais sério do que de costume e, pela quantidade de ira que seus olhos dardejavam, dava para ver que ele não tivera um bom dia lá no trabalho.
- Já para casa – disse meu pai meio preocupado com o tombo que levei.
Fui à frente cabisbaixo e meu pai logo atrás, sem nada mais dizer. Foram cerca de cem metros de percurso, mas que  pareciam quilômetros. Torcia, de cruzar os dedos das mãos, para quando chegássemos em casa, minha mãe nos esperasse. Ela não permitia de maneira alguma que o avô de vocês encostasse um só dedo nos filhos. E ele, um brutamonte de mãos grandes, braços fortes e olhar sério e carrancudo, se dobrava ante a ira da frágil criatura quando via um dos filhos ameaçado. Minha mãe sempre foi nosso refúgio, o porto seguro.
- Já prô banho, Lê!  E não demore debaixo do chuveiro – disse ela com voz
autoritária. Meu pai balançou a cabeça e apenas deu meio sorriso para a minha mãe. Eu estava salvo. Mas a verdade seja dita, meu pai nunca encostou um dedo sequer em nenhum de seus filhos. Só um olhar era como um potente murro.
            Por volta das dezenove horas, alguém chamou por minha mãe:
            - Dona Rosa, o Lê já chegou em casa – perguntava o Ciro, um dos xerifes da brincadeira e estava ofegante e suado. Pelo visto meus companheiros não viram a minha trombada com meu pai e a brincadeira ainda continuava:
            - Oi, Ciro, tudo bem? Ele já chegou e escoltado por um xerife de verdade – respondeu minha mãe com um grande sorriso.
           
Meu pai terminou a narrativa dando gostosas e saudosas gargalhadas interrompidas pela voz estridente do meu irmão do meio, o Felipe:
- Paiê, põe aquele filme preto e branco, de selva que o senhor trouxe lá da locadora para a gente assistir!
- Não põe não, pai! Conta outra história de quando o senhor era menino!
Concordando com meu pedido, Mateus o caçulinha, deu força dizendo:
- É mesmo pai, vai, conta aí!
- Está bem, meninos eu conto...

Continua no Capítulo II:
"DONA MARIA PERERECA"

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