Peripécias de
MOLEQUES
Capítulo III
“SEU” MANÉ DA DONA MANÊGA
“Naquela noite não dormi direito; qualquer barulhinho
eu acordava e corria para a janela e ver se era o ‘colhedor’ de hortaliças
alheias. Por volta das cinco e meia - da manhã -, despertei com um barulho nos
fundos do quintal:
- É o sujeito que veio buscar verduras – pensei e falando alto. Corri à janela e vi
quando um vulto pulava, de volta, o muro e gritando: - Aiiii, aiii, aiii – e meu pai com um porrete na mão gritando
palavrões.
- Que foi pai, era ladrão?
- Era alguém que estava tentando
pegar verduras de horta de sua mãe. Acho que ele não volta mais, não bati nele,
ele só se assustou. Olha, ele deixou uma bacia de alumínio velha; deve ser onde
ele levaria as verduras! - meu
pai sempre acordava às cinco horas para ir trabalhar; o larápio deu duplo azar.
Voltei
a dormir e despertei por volta das sete e meia e fui até o fundo do quintal e
vi do outro lado do muro um par de chinelos seminovo número trinta e sete, era
quase o meu número. Com certeza o larápio se esqueceu de levar e fiquei com ele
como uma espécie de pagamento das verduras roubadas. A bacia de alumínio eu
amassei e juntei com a panela da Doma Maria Perereca e rumei para o ferro velho
ver o quanto conseguiria por aquela quantidade de alumínio usado. Levei também
alguns gibis para negociar com o Valeriano. Chegando ao ferro velho da Dona
Manega...”
- Ah! Essa Dona Manega, apesar dos seus quase
setenta anos, era uma criançola que só vendo. O marido dela tinha mania de dar
guarida a todos os gatos vadios que aparecessem lá no ferro velho e, Manega,
que tinha bronquite alérgica, odiava isso. Mas, para não brigar com o velho,
fazia vista grossa a tudo. Um dia, quando fui lá vender uns pedaços de cobre
para comprar figurinhas para um álbum de jogador de futebol, já era quase hora
do almoço, e Manega preparava uns bifes de carne de boi para fritar, o Mané - seu
marido-, não estava em casa e à sua volta tinha uns quatro ou cinco gatos miando
todos ao mesmo tempo e ela, ao ouvir o meu chamado, gritou:
- Entre aqui moleque e espere; vou
logo te atender!
Eu fiquei na porta
da cozinha esperando e vendo o que ela fazia. Ela pegou um vidro de pimenta,
tirou uma pequena curtida e dentro desta colocou mais molho ardido com um conta
gotas. Pegou um pedaço de carne crua e vermelha e enrolou a pimenta com ele.
Aí, foi até a varanda da cozinha chamando os gatos: -Vem bichim,
bichim,bichim...
E, com o braço
espichado, segurava o pedaço de carne na mão. Os gatos pulavam para pegar, mas
não conseguiam. Dona Manega dava risadas com isso e, por fim, jogou a carne no meio dos bichanos. O mais esperto, um todo preto, abocanhou de
uma só vez o pedaço de carne preparado. O gatinho mastigou e quando sentiu a
pimenta estourar na sua boca, saiu dando pulos, miando esquisito e esturrando
desesperadamente. Desapareceu dali e nunca mais foi visto.
-Nossa
pai, coitado do gatinho – falou o Mateus.
- Coitado mesmo, mas tem outro
acontecimento com gato que sempre me lembro, Mateus. Este se deu em uma época as
vésperas de nos mudarmos de Muriaé. Tínhamos três gatos diferentes: um preto
liso, um branco e preto e uma gata mestiça de persa, - bege e peluda.
Todos os gatos
chegavam pela manhã, comiam a porção de ração de cada qual e sumiam pelo
quintal em busca dos seus cantos de dormirem exceto a Chibinha, - mestiça de
persa. Ela ficava embaixo do fogão à lenha. Este fogão era de aço; tinha a
chapa em cima de ferro fundido com quatro bocas em sequência de tamanho, do
diâmetro maior ao menor e um forninho, onde minha mãe assava os pães que ela
mesma fazia; eram umas delícias. A gatinha tinha ficado prenha e preguiçosa.
Não queria sair nem no quintal e resolveu fazer suas necessidades fisiológicas
dentro de casa. O quarto de costuras foi o local escolhido e do lado da herança
de minha bisavó: - uma antiguíssima máquina de costura importada.
Minha mãe, sempre paciente com os
bichanos, perdeu as estribeiras. Pegou uma vassoura e uma vasilha com água e
partiu para cinema da Chibinha:
-Gata porca, te trato como a uma filha
e é assim que me retribui! - falou isso e começou a correr atrás da gata dentro
de casa. Antes, porém, ela havia fechado toda a casa para a gata não fugir.
Eu estava na sala lendo “As Caçadas de
Pedrinho” de Monteiro Lobato e prestando atenção em tudo. A gatinha corria para
lá e para cá e minha mãe atrás com a vassoura e a água. Chibinha esturrava,
rosnava e levantava as patas dianteira para, quem sabe, se defender.
Num certo
momento a bichana ficou encantoada; não tinha para onde fugir. Tinha-lhe dois
recursos: um era pular na cabeça de Dona Rosa e a outra era ficar quieta e
receber o castigo. Chibinha olhou para minha mãe, deu um miado triste, ficou
encolhidinha e minha mãe jogou metade da água da vasilha na carinha bege dela.
A gatinha não reagiu; piscou para expelir a água que entrara nos olhos e voltou
a, simplesmente, olhar triste para minha mãe como que dizendo:
- Pode continuar a judiar! – minha mãe
parou com tudo, abraçou a gatinha carinhosamente e, com os olhos mais molhados
do que os da gatinha disse:
- Ah!Meu Deus, o que estou eu fazendo?
Quem é o irracional aqui?
-
A vovó Rosa é muito sentimental, não é pai – ressaltei.
- E
como é, meus filhos!
- Pai,
toda a família saiu de Muriaé, certo? Vocês foram para onde – perguntou o
Mateus.
- Meu
pai tinha sido transferido para uma nova obra da empresa no Rio Grande do Sul,
para Cachoeira do Sul, mais precisamente falando.
- E a
Chibinha, vocês levaram – perguntei.
- Não, sua avó me pediu para dar, ela e
os outros gatinhos, para alguém e eu dei para o Seu Mané. Ele ficou muito alegre
com os presentes. Mas, voltando à venda dos alumínios...
“Dona Manega me recebeu cordialmente como
sempre, pesou o alumínio, deu uma risadinha meio marota e falou:
- Deu quase dois quilos; o quilo é doze cruzeiros,
mas eu, no momento, só tenho quinze! Pago esses quinze cruzeiros por tudo; você
quer?
- Quero!
Dona
Manega pagou-me e colocou o alumínio, que eu vendera, junto com outros em
separado. Eu, curioso, perguntei-lhe:
- Por que a senhora separa esses
alumínios dos outros D. Manega?
- É que esses são alumínios que os
meninos, como você, trazem para eu comprar. Eles são separados ‘limpados’ e só
então nós juntamos com os outros. Entendeu Lê?
Fiquei
vermelho de vergonha e despistei:
- Cadê o seu Mané, Dona Manega – perguntei.
-
Ele foi ao pronto socorro fazer um curativo nos pés. Ele me disse que machucou
quando revirava sucatas – prontamente me
respondeu a senhora do seu Mané.
Peguei
o dinheiro e fui saindo de fininho e pensando:
- Poxa, fui passar a perna nos outros e me estrepei! Bem feito pra mim!
Quando
estava saindo pelo portão do ferro velho, vi o seu Mané chegando mancando,
descalço e com os dois pés enfaixados. Olhei para os pés dele e ele olhou para
os meus e viu os chinelos que, com certeza eram os dele:
- Bom dia seu Mané, machucou os pés?
- Pois é moleque, machuquei!
- É só não andar descalço nas
madrugadas, seu Mané – zombei-lhe.
- Tome este par de chinelos, deve ser o seu número.
Eu o achei nos fundos lá de casa. Pode pegar, vou descalço para casa guardar o
dinheiro do alumínio que vendi. Lá em casa eu calço os meus chinelos velhos.
Ele
resmungou um indecifrável palavrão e eu segui em frente.
Esse
seu Mané era o único que gostava de mexer nos bens materiais dos outros, pelo
menos ali no bairro. Quando ele chegou
da Bahia era apenas um mendigo com um saco nas costas e catava sucatas de metais,
papelões e vidros para vender. Acabou ficando íntimo de Manega e por fim,
vivendo os dois juntos, como marido e mulher.”
- Pai, o senhor
falou que ‘ele gostava de mexer nas coisas alheias’ não foi? No popular, quer
dizer que ele era gatuno?
- Sim Thiago, é isso mesmo! Vou contar
uma façanha interessante...
“Perto do nosso querido bairro Barra,
que é afastado do centro da cidade uns três quilômetros, tinha um sítio onde o
proprietário mantinha um laranjal e outras frutas além de criar galinhas. O
pomar comportava uns setenta pés de laranja-pera e outros trinta de
laranja-lima, todos produzindo e a produção ia toda para o Rio de Janeiro.
O filho, desse proprietário, o Lael, era
nosso colega de grupo escolar, mas não da turma de fora da escola. O pai dele
não o deixava sair à rua para brincar; só saía com destino à escola – ida e
volta controladas no relógio.
Certa vez ele falou que no sítio deles
tinha uma assombração, Mas falava de jeito que dava até para acreditar: Dizia
ele: - É um vulto de alguém bem velho, com uma capa toda preta, que passa no
meio dos pés de laranja com dois sacos nas costas, andando rápido e dando uns
pulinhos esquisitos. O meu pai falou que eu ando lendo muitos gibis de terror e
me proibiu de voltar a lê-los. Por isso troquei todos com você, não é Lê?”
- Era verdade, nessa troca ele me deu três
gibis de terror por um de faroeste. Minha coleção quase triplicou, pois troquei
todos os de terror por gibis de faroeste e de aventuras nas selvas, na base de
um pelo outro com o Tião Igreja, que era fascinado por história de terror.
“Mas eu, Ciro, Djalma, Tutti, Carlos
Zoião, Chinão, Cangerê, Angelim e mais uns dois ou três moleques, não
acreditamos nisso. Nós achávamos que era para nos por medo e não irmos lá para
chupar laranjas de graça, e nem nos importamos com o que ele nos contou.
Numa sexta feira, por volta das dezenove
horas, eu, Ciro, Cangerê e o Angelim, - o mais parrudo da turma – resolvemos ir
à casa do Lael trocar alguns gibis e pedir umas laranjas-lima. O pai dele,
muito a contra gosto, nos deu algumas laranjas, mas das comuns, ou seja, não
era nem pera nem lima, eram azedas de lacrimejar, só dava par chupá-las com
sal. Despedimos do Lael e quando estávamos saindo do sítio, atrás de um galpão,
ouvimos um barulho de coisas caindo após uma trombada de alguém.
Todos, quase ao mesmo tempo, pegamos os
estilingues e...”
- Pai, o que é estilingue – perguntou o Mateus.
- Era o um tipo de artefato que quase
todos os meninos faziam na época. Era composto de uma forquilha de galho de
árvore – geralmente de goiabeira, devido a maior rigidez -, duas tiras de
borracha de câmara de ar de automóvel ou de bicicleta e um pedaço de couro.
Amarrávamos uma tira em cada lado da forquilha e também no pedaço de couro e
estava feito a nossa ‘arma’.
- Já sei pai, chamavam também de
atiradeira, não é mesmo?
- Isso mesmo, Lipe!
“Todos pegamos os estilingues,
municiamos com bolinhas de gude das grandes e esperamos para ver o que era.”
- Espera aí, bolinha de gude é o mesmo
que crica, búrica ou bulita, não é?
- Isso, Thiago, é a mesma coisa; em cada
região do país dá-se um nome ou, melhor dizendo, um apelido!
“Quase morremos de susto. Era uma pessoa
coberta por uma capa preta esfarrapada e velha, com capuz e dois sacos nas
costas. Começamos a gritar e a soltar estilingadas pra cima dele. O pai do Lael
veio com uma espingarda na mão e colocou a assombração na mira. A cabeça da
pessoa sangrava, pois tinha sido acertada com uma bolinha de gude de um dos
meninos. O pai do Lael pediu ao Ciro para ir chamar o guarda do posto que
ficava ali perto.
Quando ele chegou, trazendo o soldado,
descobriu-se o mistério. Não era assombração coisa nenhuma; era o seu Mané que
sempre ia lá buscar laranjas nos dois sacos que levava nas costas.
Seu Mané passou três dias de molho na
cadeia da delegacia. Depois o pai do Lael mandou soltá-lo a pedido da Dona
Manega. Seu Mané só buscava alimento
para a meia dúzia de porcos que ele mantinha dentro de uma pocilga no fundo do
ferro-velho. O pai do Lael, depois daquele dia, deixou o seu Mané pegar as
laranjas que caiam no chão para dar aos porcos só que, de dois em dois dias.
Além disso, juntava uma lata de lavagem que não era nada mais do que as sobras
das refeições da família do dono do sítio.”
- Esse Seu Mané era um atrapalhado, não
é pai?
- Isso mesmo Felipe, e como era! Vou
continuar...
“Continuei meu caminho rumo á casa do
meu amigo trocador de gibis. Lá chegando constatei que o Valeriano não tinha
nenhum gibi que eu não lera, mas como ele estava doido por um de aventuras
interplanetárias que tinha, fizemos a permuta por duas que eu já lera; talvez
por estar com pena dele.”
- Ué pai, mas não se trocava uma pela
outra quando eram gibis normais? O Valeriano deu dois gibis pelo seu – atento pedi uma explicação.
- É Thiago, mas desde aquela idade eu já
sabia negociar. Como eu já tinha lido todos os gibis que ele me mostrara eu fiz
uma proposta e ele aceitou, numa boa – tentou
explicar meu pai.
-
Mas pai, pena do Valeriano por quê? Ele não era rico e tinha dinheiro à vontade
– expressou o Lipe.
-
Eu vou contar o que aconteceu com ele:
Continua no
capítulo IV:
“MEU AMIGO VALERIANO”
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