sábado, 22 de dezembro de 2012

PROJETO DE UM LIVRO - CAP.: III




Peripécias de 
MOLEQUES

Capítulo III

“SEU” MANÉ  DA  DONA MANÊGA 

Naquela noite não dormi direito; qualquer barulhinho eu acordava e corria para a janela e ver se era o ‘colhedor’ de hortaliças alheias. Por volta das cinco e meia - da manhã -, despertei com um barulho nos fundos do quintal:
            - É o sujeito que veio buscar verduras – pensei e falando alto. Corri à janela e vi quando um vulto pulava, de volta, o muro e gritando: - Aiiii, aiii, aiii – e meu pai com um porrete na mão gritando palavrões.
            - Que foi pai, era ladrão?
            - Era alguém que estava tentando pegar verduras de horta de sua mãe. Acho que ele não volta mais, não bati nele, ele só se assustou. Olha, ele deixou uma bacia de alumínio velha; deve ser onde ele levaria as verduras! - meu pai sempre acordava às cinco horas para ir trabalhar; o larápio deu duplo azar.
            Voltei a dormir e despertei por volta das sete e meia e fui até o fundo do quintal e vi do outro lado do muro um par de chinelos seminovo número trinta e sete, era quase o meu número. Com certeza o larápio se esqueceu de levar e fiquei com ele como uma espécie de pagamento das verduras roubadas. A bacia de alumínio eu amassei e juntei com a panela da Doma Maria Perereca e rumei para o ferro velho ver o quanto conseguiria por aquela quantidade de alumínio usado. Levei também alguns gibis para negociar com o Valeriano. Chegando ao ferro velho da Dona Manega...”
           
         - Ah! Essa Dona Manega, apesar dos seus quase setenta anos, era uma criançola que só vendo. O marido dela tinha mania de dar guarida a todos os gatos vadios que aparecessem lá no ferro velho e, Manega, que tinha bronquite alérgica, odiava isso. Mas, para não brigar com o velho, fazia vista grossa a tudo. Um dia, quando fui lá vender uns pedaços de cobre para comprar figurinhas para um álbum de jogador de futebol, já era quase hora do almoço, e Manega preparava uns bifes de carne de boi para fritar, o Mané - seu marido-, não estava em casa e à sua volta tinha uns quatro ou cinco gatos miando todos ao mesmo tempo e ela, ao ouvir o meu chamado, gritou:
         - Entre aqui moleque e espere;  vou logo te atender!
Eu fiquei na porta da cozinha esperando e vendo o que ela fazia. Ela pegou um vidro de pimenta, tirou uma pequena curtida e dentro desta colocou mais molho ardido com um conta gotas. Pegou um pedaço de carne crua e vermelha e enrolou a pimenta com ele. Aí, foi até a varanda da cozinha chamando os gatos: -Vem bichim, bichim,bichim...
E, com o braço espichado, segurava o pedaço de carne na mão. Os gatos pulavam para pegar, mas não conseguiam. Dona Manega dava risadas com isso e, por fim, jogou a carne no meio dos bichanos. O mais esperto, um todo preto, abocanhou de uma só vez o pedaço de carne preparado. O gatinho mastigou e quando sentiu a pimenta estourar na sua boca, saiu dando pulos, miando esquisito e esturrando desesperadamente. Desapareceu dali e nunca mais foi visto.

         -Nossa pai, coitado do gatinho – falou o Mateus.
         - Coitado mesmo, mas tem outro acontecimento com gato que sempre me lembro, Mateus. Este se deu em uma época as vésperas de nos mudarmos de Muriaé. Tínhamos três gatos diferentes: um preto liso, um branco e preto e uma gata mestiça de persa, - bege e peluda.
Todos os gatos chegavam pela manhã, comiam a porção de ração de cada qual e sumiam pelo quintal em busca dos seus cantos de dormirem exceto a Chibinha, - mestiça de persa. Ela ficava embaixo do fogão à lenha. Este fogão era de aço; tinha a chapa em cima de ferro fundido com quatro bocas em sequência de tamanho, do diâmetro maior ao menor e um forninho, onde minha mãe assava os pães que ela mesma fazia; eram umas delícias. A gatinha tinha ficado prenha e preguiçosa. Não queria sair nem no quintal e resolveu fazer suas necessidades fisiológicas dentro de casa. O quarto de costuras foi o local escolhido e do lado da herança de minha bisavó: - uma antiguíssima máquina de costura importada.
         Minha mãe, sempre paciente com os bichanos, perdeu as estribeiras. Pegou uma vassoura e uma vasilha com água e partiu para cinema da Chibinha:
         -Gata porca, te trato como a uma filha e é assim que me retribui! - falou isso e começou a correr atrás da gata dentro de casa. Antes, porém, ela havia fechado toda a casa para a gata não fugir.
         Eu estava na sala lendo “As Caçadas de Pedrinho” de Monteiro Lobato e prestando atenção em tudo. A gatinha corria para lá e para cá e minha mãe atrás com a vassoura e a água. Chibinha esturrava, rosnava e levantava as patas dianteira para, quem sabe, se defender.
Num certo momento a bichana ficou encantoada; não tinha para onde fugir. Tinha-lhe dois recursos: um era pular na cabeça de Dona Rosa e a outra era ficar quieta e receber o castigo. Chibinha olhou para minha mãe, deu um miado triste, ficou encolhidinha e minha mãe jogou metade da água da vasilha na carinha bege dela. A gatinha não reagiu; piscou para expelir a água que entrara nos olhos e voltou a, simplesmente, olhar triste para minha mãe como que dizendo:
         - Pode continuar a judiar! – minha mãe parou com tudo, abraçou a gatinha carinhosamente e, com os olhos mais molhados do que os da gatinha disse:
         - Ah!Meu Deus, o que estou eu fazendo? Quem é o irracional aqui?

         - A vovó Rosa é muito sentimental, não é pai – ressaltei.
         - E como é, meus filhos!
         - Pai, toda a família saiu de Muriaé, certo? Vocês foram para onde – perguntou o Mateus.
         - Meu pai tinha sido transferido para uma nova obra da empresa no Rio Grande do Sul, para Cachoeira do Sul, mais precisamente falando.
         - E a Chibinha, vocês levaram – perguntei.
         - Não, sua avó me pediu para dar, ela e os outros gatinhos, para alguém e eu dei para o Seu Mané. Ele ficou muito alegre com os presentes. Mas, voltando à venda dos alumínios...

         “Dona Manega me recebeu cordialmente como sempre, pesou o alumínio, deu uma risadinha meio marota e falou:
            - Deu quase dois quilos; o quilo é doze cruzeiros, mas eu, no momento, só tenho quinze! Pago esses quinze cruzeiros por tudo; você quer?
            - Quero!
            Dona Manega pagou-me e colocou o alumínio, que eu vendera, junto com outros em separado. Eu, curioso, perguntei-lhe:
            - Por que a senhora separa esses alumínios dos outros D. Manega?
            - É que esses são alumínios que os meninos, como você, trazem para eu comprar. Eles são separados ‘limpados’ e só então nós juntamos com os outros. Entendeu Lê?
            Fiquei vermelho de vergonha e despistei:
            - Cadê o seu Mané, Dona Manega – perguntei.
            - Ele foi ao pronto socorro fazer um curativo nos pés. Ele me disse que machucou quando revirava sucatas – prontamente me respondeu a senhora do seu Mané.
            Peguei o dinheiro e fui saindo de fininho e pensando:
            - Poxa, fui passar a perna nos outros e me estrepei! Bem feito pra mim!
            Quando estava saindo pelo portão do ferro velho, vi o seu Mané chegando mancando, descalço e com os dois pés enfaixados. Olhei para os pés dele e ele olhou para os meus e viu os chinelos que, com certeza eram os dele:
            - Bom dia seu Mané, machucou os pés?
            - Pois é moleque, machuquei!
            - É só não andar descalço nas madrugadas, seu Mané – zombei-lhe.
            - Tome este par de chinelos, deve ser o seu número. Eu o achei nos fundos lá de casa. Pode pegar, vou descalço para casa guardar o dinheiro do alumínio que vendi. Lá em casa eu calço os meus chinelos velhos.
            Ele resmungou um indecifrável palavrão e eu segui em frente.
            Esse seu Mané era o único que gostava de mexer nos bens materiais dos outros, pelo menos ali no bairro.  Quando ele chegou da Bahia era apenas um mendigo com um saco nas costas e catava sucatas de metais, papelões e vidros para vender. Acabou ficando íntimo de Manega e por fim, vivendo os dois juntos, como marido e mulher.”
           
            - Pai, o senhor falou que ‘ele gostava de mexer nas coisas alheias’ não foi? No popular, quer dizer que ele era gatuno?
- Sim Thiago, é isso mesmo! Vou contar uma façanha interessante...

“Perto do nosso querido bairro Barra, que é afastado do centro da cidade uns três quilômetros, tinha um sítio onde o proprietário mantinha um laranjal e outras frutas além de criar galinhas. O pomar comportava uns setenta pés de laranja-pera e outros trinta de laranja-lima, todos produzindo e a produção ia toda para o Rio de Janeiro.
O filho, desse proprietário, o Lael, era nosso colega de grupo escolar, mas não da turma de fora da escola. O pai dele não o deixava sair à rua para brincar; só saía com destino à escola – ida e volta controladas no relógio.
Certa vez ele falou que no sítio deles tinha uma assombração, Mas falava de jeito que dava até para acreditar: Dizia ele: - É um vulto de alguém bem velho, com uma capa toda preta, que passa no meio dos pés de laranja com dois sacos nas costas, andando rápido e dando uns pulinhos esquisitos. O meu pai falou que eu ando lendo muitos gibis de terror e me proibiu de voltar a lê-los. Por isso troquei todos com você, não é Lê?”

- Era verdade, nessa troca ele me deu três gibis de terror por um de faroeste. Minha coleção quase triplicou, pois troquei todos os de terror por gibis de faroeste e de aventuras nas selvas, na base de um pelo outro com o Tião Igreja, que era fascinado por história de terror.

“Mas eu, Ciro, Djalma, Tutti, Carlos Zoião, Chinão, Cangerê, Angelim e mais uns dois ou três moleques, não acreditamos nisso. Nós achávamos que era para nos por medo e não irmos lá para chupar laranjas de graça, e nem nos importamos com o que ele nos contou.
Numa sexta feira, por volta das dezenove horas, eu, Ciro, Cangerê e o Angelim, - o mais parrudo da turma – resolvemos ir à casa do Lael trocar alguns gibis e pedir umas laranjas-lima. O pai dele, muito a contra gosto, nos deu algumas laranjas, mas das comuns, ou seja, não era nem pera nem lima, eram azedas de lacrimejar, só dava par chupá-las com sal. Despedimos do Lael e quando estávamos saindo do sítio, atrás de um galpão, ouvimos um barulho de coisas caindo após uma trombada de alguém.
Todos, quase ao mesmo tempo, pegamos os estilingues e...”

- Pai, o que é estilingue – perguntou o Mateus.
- Era o um tipo de artefato que quase todos os meninos faziam na época. Era composto de uma forquilha de galho de árvore – geralmente de goiabeira, devido a maior rigidez -, duas tiras de borracha de câmara de ar de automóvel ou de bicicleta e um pedaço de couro. Amarrávamos uma tira em cada lado da forquilha e também no pedaço de couro e estava feito a nossa ‘arma’.
- Já sei pai, chamavam também de atiradeira, não é mesmo?
- Isso mesmo, Lipe!

“Todos pegamos os estilingues, municiamos com bolinhas de gude das grandes e esperamos para ver o que era.”

- Espera aí, bolinha de gude é o mesmo que crica, búrica ou bulita, não é?
- Isso, Thiago, é a mesma coisa; em cada região do país dá-se um nome ou, melhor dizendo, um apelido!

“Quase morremos de susto. Era uma pessoa coberta por uma capa preta esfarrapada e velha, com capuz e dois sacos nas costas. Começamos a gritar e a soltar estilingadas pra cima dele. O pai do Lael veio com uma espingarda na mão e colocou a assombração na mira. A cabeça da pessoa sangrava, pois tinha sido acertada com uma bolinha de gude de um dos meninos. O pai do Lael pediu ao Ciro para ir chamar o guarda do posto que ficava ali perto.
Quando ele chegou, trazendo o soldado, descobriu-se o mistério. Não era assombração coisa nenhuma; era o seu Mané que sempre ia lá buscar laranjas nos dois sacos que levava nas costas.
Seu Mané passou três dias de molho na cadeia da delegacia. Depois o pai do Lael mandou soltá-lo a pedido da Dona Manega.  Seu Mané só buscava alimento para a meia dúzia de porcos que ele mantinha dentro de uma pocilga no fundo do ferro-velho. O pai do Lael, depois daquele dia, deixou o seu Mané pegar as laranjas que caiam no chão para dar aos porcos só que, de dois em dois dias. Além disso, juntava uma lata de lavagem que não era nada mais do que as sobras das refeições da família do dono do sítio.”

- Esse Seu Mané era um atrapalhado, não é pai?
- Isso mesmo Felipe, e como era! Vou continuar...

“Continuei meu caminho rumo á casa do meu amigo trocador de gibis. Lá chegando constatei que o Valeriano não tinha nenhum gibi que eu não lera, mas como ele estava doido por um de aventuras interplanetárias que tinha, fizemos a permuta por duas que eu já lera; talvez por estar com pena dele.”

- Ué pai, mas não se trocava uma pela outra quando eram gibis normais? O Valeriano deu dois gibis pelo seu – atento pedi uma explicação.
- É Thiago, mas desde aquela idade eu já sabia negociar. Como eu já tinha lido todos os gibis que ele me mostrara eu fiz uma proposta e ele aceitou, numa boa – tentou explicar meu pai.
- Mas pai, pena do Valeriano por quê? Ele não era rico e tinha dinheiro à vontade – expressou o Lipe.
- Eu vou contar o que aconteceu com ele:


Continua no capítulo IV:
MEU AMIGO VALERIANO

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