quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

PROJETO DE UM LIVRO CAP.: II



Peripécias de 
MOLEQUES
Capítulo II:
Dona Maria Perereca
     O avô de vocês era, como já sabem, operário em uma construtora e recebia um parco salário, mas pago, religiosamente, todo o dia dez. E, como era final de janeiro de 1963, ele estava sem dinheiro e eu, então,  nem se fala.
            Naquela época, eu já começara a ficar fanático por histórias em quadrinhos, igual a vocês hoje com televisão e videogames. Eu era e sou, até hoje, alucinado por filmes de selva, principalmente, pelo Tarzan. Por incrível coincidência passaria no cinema do bairro, na sexta-feira daquela semana, o filme ‘Tarzan e as Sereias’; um dos bons filmes onde o saudoso Johnny Weismuller era o protagonista.  Este era o único filme dele, como Tarzan, que eu não tinha assistido. A molecada toda, desde o início da semana, só falava no herói das selvas. Todas as brincadeiras tinham que ter selva no meio. Gibi, então, só da personagem em pauta.
            Mas era quinta feira e eu não tinha conseguido nem um centavo para o ingresso do cinema. O preço de cinquentas cruzeiros daqueles antigos era para mim, uma pequena fortuna.”

        - Igual àquela cédula da minha coleção de dinheiros antigos, pai – perguntou-me o Felipe, demonstrando estar atento à história.
         - É sim Lipe, igual aquela que seu avô te deu, mas deixa-me continuar...

         “Eu pensava e repensava em como arrumar o bendito dinheiro. Vender meus gibis não podia e nem queria; vender garrafas vazias não podia e nem tinha mais mesmo, pois eu já as vendera as que tínhamos e levei uma bronca violenta por isso.
            E o que fazer, então? Pensava tudo isto sentado na varanda da cozinha com o olhar distante, lá nas montanhas que, ao longe, pareciam ser de um verde-azulado indescritível. E, era por essas montanhas que a gente ficava sabendo se ia chover, pois parecia que elas sumiam encobertas pelas nuvens.
            - O que faço meu Deus – perguntava em meus pensamentos quando, de repente, ouvi um moleque passar na rua e gritar:
            - E aí, Maria Perereca?
            E a voz esganiçada gritava nervosamente em resposta ao menino:
            - É a tua mãe, moleque sem vergonha e mal educado. Se eu tivesse alguma coisa nas mãos eu rachava essa tua cabeça piolhenta seu...
            Os palavrões continuaram a ser gritados para o moleque que, em desmedida carreira, ria de dar gosto”.

         - Antes que vocês me perguntem quem era essa senhora, eu explico: Dona Maria Quitéria era uma idosa que morava na nossa rua, três casas adiante da minha, rumo ao centro da cidade. Era viúva e estava sempre mascando fumo de rolo. O apelido era devido ao seu jeito magrelo e aos olhos esbugalhados. O interessante era quando ela falava alto  espirrava saliva escura para todos os lados, devido ao fumo que mascava.
         Certa vez, ela foi até minha casa falar assunto, sem importância nenhuma, com minha mãe, que estava fritando batatas inglesas para o atrasado almoço; Dona Maria, ao lado do fogão, falava tanto e sem parar que sua saliva caía na frigideira fazendo um barulho característico de gotas de água quando caem na gordura quente.
         Minha mãe suava frio de raiva, mas não falou nada, pois a velha era bastante escandalosa e não tinha freio na língua. Tão logo ela se despediu, minha mãe jogou as batatinhas no lixo e ainda lavou a frigideira com cinza do fogão à lenha.
         - Credo pai, que nojo – exclamou Mateus que apesar de estar revirando alguns gibis antigos, da minha coleção, estava atento à narrativa.
         - É Mateus a Dona Maria era uma figura...

         “A tarde estava monótona e com um mormaço insuportável e minha mãe me chamou quase aos gritos:
            - Lê, venha aqui na horta, rápido!
         Atendendo ao seu chamado, corri até a horta, que minha mãe cuidava no quintal de casa e, não admitia que ninguém mexesse, senão ela.
            - Olha meu filho, alguém pegou três pés de alface, diversos de rúcula e vários rabanetes; dá para você arrumar essas madeiras que estão encostadas naquele canto? Coloque por toda a extensão do muro para dificultar quem pegou as hortaliças, caso ele volte. Deve ser pessoa adulta... olha o tamanho das pegadas. Ele estava descalço para não fazer barulho. Faça o que te peço que  vou recolher as roupas enxutas do varal, tá bom?
            - Sim mãe, deixe comigo!
            Olhei, pensei e tive uma ideia...
        Encostei as madeiras por toda a extensão do muro e deixei apenas um local por onde o larápio, se retornasse naquela noite, poderia passar. Com certeza ele teria uma surpresa. Recortei vários pedaços retangulares com mais ou menos vinte e cinco centímetros de cartolina azul escura, que sobrara de um trabalho escolar, e nelas coloquei tachinhas, das grandes, que meu pai usava para colocar meias-solas em nossos sapatos. Com essas meias-solas os sapatos duravam uma eternidade. Como à tarde já ia embora coloquei as cartolinas com as tachinhas logo embaixo do local por onde o “esperto” pularia para roubar mais verduras.
            Deixei tudo preparado e entrei em casa; peguei uma porção de gibis e falei para sua avó:
            - Mãe, vou à casa do Valeriano trocar gibis!
           - Pode ir, mas responda para mim uma coisa: - Você escovou os dentes depois do almoço? Eu não vi!
            - Escovei sim mãe!”

         A avó de vocês era até chata neste aspecto. Insistia muito para que os cinco filhos escovassem regularmente os dentes. Ela tinha uns dentes extremamente brancos e perfeitos; vivia sempre sorrindo.  Eu, porém, nunca a tinha visto  escovando os próprios dentes.
         Teve uma noite que chovia muito e fazia frio, eu me levantei e fui até ao quarto dela pedir mais um cobertor. Como a porta estava só encostada e ela dormia só, visto que o avô de vocês viajara a serviço da empresa, entrei de uma vez e levei o maior susto de minha vida. Um susto horrível, mesmo. Minha mãe estava sem os dentes e com a boca bem murcha e, sobre o criado-mudo, dentro de um copo com água, estava um perfeito e branquíssimo par de dentaduras. Foi só aí que entendi a preocupação dela coma a saúde bucal dos seus filhos.

         -Taí a sua preocupação com nossos dentes, não é pai – completou o Felipe com um sorriso perfeito.
        
         - O que era ‘trocar gibis’ – perguntei ao meu velho.
        - Trocar gibis consistia, naquela época  do seguinte: Eu tinha certa quantidade de revistas em quadrinhos, comumente chamadas de gibis pela molecada e todos eles eu já  tinha lido, é claro! Então, havia uma permuta com outro colega que também tinha revistas do gênero, que existiam aos montes e de todos os tipos, naqueles tempos. Enquanto eu pegava da coleção dele uma revista inédita para mim, ele fazia o mesmo com um  dos meus gibis. Existiam as edições extras, os almanaques de férias e os almanaques anuais com o dobro ou o triplo de páginas de um gibi comum. Por isso, aqueles valiam, na transação, duas, três ou até mais gibis comuns, dependendo da raridade e do herói. Alguns tipos de gibis eu colecionava e não trocava de jeito nenhum e os tenho até hoje.
         - Voltando ao ‘causo’, minha mãe disse:

            -Vai, mas não demore e toma cuidado, meu filho, que o sol não demora a se por!
            No caminho que rumava até a casa do meu amigo eu ia procurando alumínio usado, ferro velho e pedaços de fios de cobre para vender a fim de conseguir alguns trocados. Mas, no entanto, não conseguia achar nada, pois parecia que todos os garotos tiveram a mesma ideia há meses. O jeito seria, em último caso, vender parte dos meus gibis ao Valeriano, pois o pai dele era fazendeiro rico e ele, como filho único, tinha dinheiro para torrar com o que quisesse.
            Nesse caminho eu passei defronte a casa de Dona Maria Perereca, e vi que ela estava junto à janela da cozinha lavando uma velha e grande panela de alumínio e lembrei do que ela falara ao moleque que mexera com ela:... ‘Se eu tivesse alguma coisa nas mãos jogava na tua cabeça... ’
            Deus que me perdoe, mas veio na minha mente uma ideia que só um menino poderia ter: Cobri a cabeça com parte da camisa, aproveitei que a pobre era míope e não me reconheceria, comecei a cantar em voz alta uma marchinha de carnaval que era sucesso na época:
            -’... a perereca da vizinha tá presa na gaiola, xô perereca... xô perereca... ’ – e apertei o passo me preparando para correr. A velha ficou vermelha de raiva e parecia que ia explodir, danou a praguejar e, de onde ela estava, arremessou a panela que lavava em minha direção e esta passou raspando a minha cabeça e comecei a gritar:
            - Aiiiiiiiiiii... aiiiiiiiii, minha cabeça, a senhora me acertou aiiiiii... aiiiiiii. Eu estava só cantando e a senhora me machucou, vou falar para o meu pai... aiiiiiii!
            - Volte aqui, meu filho, foi sem querer, venha cá – coitada dela, no fundo era só uma viúva solitária e carente.
            Sai dali e fui para detrás de uma fábrica de doces que tinha no bairro; coloquei os gibis sobre uma pedra e preparei para amassar a panela para vendê-la:
            - Poxa, essa panela não vai pesar nada e não vou conseguir nem cinco cruzeiros – pensei alto.
            Foi aí que tive outra ideia de moleque encapetado. Coloquei uma pedra dentro da panela e só então a amassei até esconder o que tinha dentro. Ficou um pouco mais pesada e dava para conseguir um pouco mais por ele.”

            - Mas isso é desonesto, pai! O senhor não se cansa de falar para nós sermos honestos – falou o Mateus meio indignado.
         - Eu sei Mateus, hoje reconheço o quanto é errado e oriento vocês para não agirem desonestamente!
         - Ô Matinho, deixa o pai continuar – gritou o Felipe.

            “Enrolei a panela num jornal e voltei para casa; deixei para ir à casa do Valeriano no outro dia cedo”.


Continua no Capítulo  III:
“SEU” MANÉ DA DONA MANÊGA

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