sábado, 29 de dezembro de 2012

PROJETO DE UM LIVRO - CAP.: IV




Peripécias de 
MOLEQUES

CAPÍTULO  IV

MEU AMIGO VALERIANO



“O Valeriano era dois anos mais velho do que eu, beirava os quinze anos. Era um tipo comprido, magro e metido a zagueiro central, quando jogávamos futebol. Num joguinho qualquer da turma, este meu amigo queria ser o destaque; quando a bola era cruzada pelo adversário, da linha de fundo, ele pulava com todo o estilo de um Belini - um dos melhores zagueiros que já passou pela seleção brasileira -, e cabeceava a bola para o ataque. Certa vez ele foi passar as férias de julho na fazenda do pai dele e lá havia, perto do campo de futebol, uma cancha de bocha.”

            - Bocha, o que é isso, pai?
         -Vou explicar Thiago: bocha é um tipo de jogo onde as equipes podem ser um contra um, com quatro bochas para cada jogador; dois contra dois, com duas bochas para cada jogador ou três contra três, com duas bochas para cada jogador. As bochas eram esféricas e de madeira com uns dez centímetros de diâmetro e pesava mais ou menos um quilo cada. As equipes usam cores diferentes. O intuito é aproximar as bochas o mais possível de uma bolinha de ferro de, mais ou menos, quatro centímetros. Na fazenda e região era chamada de Chico.
         - Entendido, pai, continue!
         - Ok, Thiago...

            “No dia em que ele chegou lá na fazenda, era domingo de manhã, por volta das dez horas e iria ter uma partida de futebol contra o time da fazenda vizinha. Tudo estava animado desde cedo. Na cancha de bocha um dos primos do Valeriano, vendo-o, pegou uma das bolas de madeira, de cor laranja, igual à cor de uma bola de futebol, da época, com a qual estava jogando bocha e gritou:
            - Ei, becão, mata esta no peito – falou isso e soltou a bola no rumo do meu amigo.
            Porém, ela tinha sido arremessada alta demais e o Valeriano, sorrindo inocentemente e com seu costumeiro estilo, pulou alto e deu de testa bem no meio da bola. Do jeito que ele subiu, caiu, durinho, para frente.  A correria foi geral; não teve futebol nem férias para o meu amigo, coitado. Até hoje ele tem sequela daquele lance.”

            - Eu ficava sempre triste quando saia da presença do meu amigo Valeriano – falou meu pai com tristeza no semblante.

            “Já na rua, rumando para minha casa, alguém gritou:
            - Lê, ei Lê – era o Ciro, meu melhor amigo, e que há pouco tempo tinha sido expulso do grupo escolar. Melhor falando, a diretora do grupo forçou a transferência dele para a escola do bairro vizinho, por ter dado um susto numa professora que estava grávida.”

            - Nossa pai, que moleque ruim! Como foi – perguntou o Felipe.
         - Foi assim: a professora titular da turma do Ciro era uma loirinha, bonita e muito nova, tinha se formado há poucos anos em magistério. Ela pediu transferência para a capital a fim de estudar letras. O sonho dela era ser professora de português e inglês. Ela havia conseguido e, na data anterior  às provas, ela despediu-se e foi embora. Ficou no lugar dela, como provisória, Dona Glória conhecida pelos estudantes como uma estúpida e de péssimo humor.
         No dia das provas o Ciro chegou cedo ao prédio da escola. Subiu no telhado e passou um fio de linha de pescar – náilon – que dava em cima da mesa da professora; desceu do telhado, entrou na sala vazia, puxou a linha e amarrou nela uma tarântula de plástico que era igualzinha a uma aranha de verdade. Voltou para cima do telhado e puxou a linha até o ‘aracnídeo’ ficar colado no teto que, por sinal, era pintado de azul contrastando, horrivelmente, com as paredes que eram bege claro.
            Ele não foi  à aula , lógico. Quando a turma já estava na sala e concentrada fazendo a prova, ele soltou a linha e a aranha foi descendo e parou na frente do rosto da professora. Ela deu um grito e desmaiou. A criançada saiu correndo da sala; foi uma baderna generalizada. O Ciro, que também assustou com o grito da professora, se desequilibrou e caiu do telhado. Não teve como fugir, pois ele tinha deslocado a clavícula esquerda.
         A Dona Glória foi parar no pronto socorro e só voltou ao grupo dois dias depois. Foi só susto; nada de mal aconteceu com ela e o bebê, para a sorte do Ciro. A diretora, Dona Amélia foi quem aplicou as provas no dia seguinte, sem a presença do Ciro.
        
         - Caramba pai, o senhor era um anjo perto desse Ciro – exclamei de pronto.
         - Era mesmo, Thiago!

            “- O que você quer Ciro, por que me chamou, tem gibis para trocar?
            - Tenho, mas deixa para depois! Sabe aqueles pés de carambolas do quintal da casa do Zé Mário?
            - Sei! O que é que tem – respondi,  perguntando.
            - Eles estão carregadinhos e quase todas os frutos estão no ponto!
            - É, mas o seu Zé Mário não dá nenhuma fruta para ninguém. É um unha de fome e encrenqueiro, desista!
            - Eu sei, eu sei, mas nós não vamos pedir, nós vamos é pegar – disse Ciro.
            - Tá louco, sô! Ele tem dois baita cachorros bravos e  só de ouvir voz de moleque eles já latem!
            -Isso eu, também, já sei e tive uma ideia! Preste atenção: - A cadela lá de casa está no cio e meu pai a prendeu em casa; ela está desesperada, coitada. Vou pegar os panos que ela urinou em cima e jogá-los para os cachorros do seu Zé Mário. Eles vão cheirar e ficarão desorientados, entendeu?
            - Acho que mais ou menos; mas se você acha que vai dar certo, eu topo. Como vou ajudar?
            Você vai tocar a campainha da casa dele e pedir umas carambolas; ele não vai dar e você puxa  qualquer assunto, ou seja, fala de futebol, gibis, etc, entendeu?
            - Entendi, quando vamos agir – perguntei.
            - Agora mesmo! Vamos passar lá em casa, que é caminho, e pegar os panos mijados da Dalila.
            Cerca de quinze minutos depois apertei a campainha da porta do seu Zé Mário e vi o Ciro jogando os panos por cima do muro do quintal da casa. Os cachorros ficaram quietos e ele pulou o muro com uma sacola na mão.
- Que é que você quer menino – perguntou –me o dono da casa ao abrir a porta.
- Seu Zé, será que o senhor me dá umas carambolas maduras que estão caídas embaixo dos pés, no chão?
Nisso ouvimos os cachorros rosnando e meu amigo Ciro gritando e o seu Zé falou:
- Entra e vamos ver quem é o maluco que pulou o muro do meu quintal!
O Ciro estava encurralado pelos cães e seu Zé gritou:
- Passa fora Laika; sai Princesa! Não eram cães machos , eram cadelas e o cheiro de cio no pano as deixaram mais nervosas ainda. A Laika baixou a cabeça e saiu, mas a Princesa mordeu a perna do Ciro.
            Seu Zé Mário ficou aflito e pediu para eu ir até a casa do Ciro e chamar a mãe dele.
Coitado do Ciro foi para o pronto socorro e levou um monte de injeção por causa da mordida da Princesa. Eu saí da casa do seu Zé Mário com uma sacola cheia de carambolas.
Mais tarde eu fui até a casa do Ciro levar a metade das carambolas que tínhamos ganhado e contei a novidade para ele:
- Sabe Ciro, o seu Zé Mário tem um monte de gibis antigos; ele gosta tanto de gibis que convidou eu e você para trocar nossos gibis com ele!
- Só se for daqui uma semana, Lê! Eu estou de castigo – resmungou o meu amigo mordendo uma carambola, mesmo, sem lavá-la. Mas, tão logo ele saiu do castigo aprontou outra das dele.”

- Como pai, conta aí – pediu o Felipe.
- Pois bem...
Continua no capítulo V:
A VINGANÇA DO CIRO


sábado, 22 de dezembro de 2012

PROJETO DE UM LIVRO - CAP.: III




Peripécias de 
MOLEQUES

Capítulo III

“SEU” MANÉ  DA  DONA MANÊGA 

Naquela noite não dormi direito; qualquer barulhinho eu acordava e corria para a janela e ver se era o ‘colhedor’ de hortaliças alheias. Por volta das cinco e meia - da manhã -, despertei com um barulho nos fundos do quintal:
            - É o sujeito que veio buscar verduras – pensei e falando alto. Corri à janela e vi quando um vulto pulava, de volta, o muro e gritando: - Aiiii, aiii, aiii – e meu pai com um porrete na mão gritando palavrões.
            - Que foi pai, era ladrão?
            - Era alguém que estava tentando pegar verduras de horta de sua mãe. Acho que ele não volta mais, não bati nele, ele só se assustou. Olha, ele deixou uma bacia de alumínio velha; deve ser onde ele levaria as verduras! - meu pai sempre acordava às cinco horas para ir trabalhar; o larápio deu duplo azar.
            Voltei a dormir e despertei por volta das sete e meia e fui até o fundo do quintal e vi do outro lado do muro um par de chinelos seminovo número trinta e sete, era quase o meu número. Com certeza o larápio se esqueceu de levar e fiquei com ele como uma espécie de pagamento das verduras roubadas. A bacia de alumínio eu amassei e juntei com a panela da Doma Maria Perereca e rumei para o ferro velho ver o quanto conseguiria por aquela quantidade de alumínio usado. Levei também alguns gibis para negociar com o Valeriano. Chegando ao ferro velho da Dona Manega...”
           
         - Ah! Essa Dona Manega, apesar dos seus quase setenta anos, era uma criançola que só vendo. O marido dela tinha mania de dar guarida a todos os gatos vadios que aparecessem lá no ferro velho e, Manega, que tinha bronquite alérgica, odiava isso. Mas, para não brigar com o velho, fazia vista grossa a tudo. Um dia, quando fui lá vender uns pedaços de cobre para comprar figurinhas para um álbum de jogador de futebol, já era quase hora do almoço, e Manega preparava uns bifes de carne de boi para fritar, o Mané - seu marido-, não estava em casa e à sua volta tinha uns quatro ou cinco gatos miando todos ao mesmo tempo e ela, ao ouvir o meu chamado, gritou:
         - Entre aqui moleque e espere;  vou logo te atender!
Eu fiquei na porta da cozinha esperando e vendo o que ela fazia. Ela pegou um vidro de pimenta, tirou uma pequena curtida e dentro desta colocou mais molho ardido com um conta gotas. Pegou um pedaço de carne crua e vermelha e enrolou a pimenta com ele. Aí, foi até a varanda da cozinha chamando os gatos: -Vem bichim, bichim,bichim...
E, com o braço espichado, segurava o pedaço de carne na mão. Os gatos pulavam para pegar, mas não conseguiam. Dona Manega dava risadas com isso e, por fim, jogou a carne no meio dos bichanos. O mais esperto, um todo preto, abocanhou de uma só vez o pedaço de carne preparado. O gatinho mastigou e quando sentiu a pimenta estourar na sua boca, saiu dando pulos, miando esquisito e esturrando desesperadamente. Desapareceu dali e nunca mais foi visto.

         -Nossa pai, coitado do gatinho – falou o Mateus.
         - Coitado mesmo, mas tem outro acontecimento com gato que sempre me lembro, Mateus. Este se deu em uma época as vésperas de nos mudarmos de Muriaé. Tínhamos três gatos diferentes: um preto liso, um branco e preto e uma gata mestiça de persa, - bege e peluda.
Todos os gatos chegavam pela manhã, comiam a porção de ração de cada qual e sumiam pelo quintal em busca dos seus cantos de dormirem exceto a Chibinha, - mestiça de persa. Ela ficava embaixo do fogão à lenha. Este fogão era de aço; tinha a chapa em cima de ferro fundido com quatro bocas em sequência de tamanho, do diâmetro maior ao menor e um forninho, onde minha mãe assava os pães que ela mesma fazia; eram umas delícias. A gatinha tinha ficado prenha e preguiçosa. Não queria sair nem no quintal e resolveu fazer suas necessidades fisiológicas dentro de casa. O quarto de costuras foi o local escolhido e do lado da herança de minha bisavó: - uma antiguíssima máquina de costura importada.
         Minha mãe, sempre paciente com os bichanos, perdeu as estribeiras. Pegou uma vassoura e uma vasilha com água e partiu para cinema da Chibinha:
         -Gata porca, te trato como a uma filha e é assim que me retribui! - falou isso e começou a correr atrás da gata dentro de casa. Antes, porém, ela havia fechado toda a casa para a gata não fugir.
         Eu estava na sala lendo “As Caçadas de Pedrinho” de Monteiro Lobato e prestando atenção em tudo. A gatinha corria para lá e para cá e minha mãe atrás com a vassoura e a água. Chibinha esturrava, rosnava e levantava as patas dianteira para, quem sabe, se defender.
Num certo momento a bichana ficou encantoada; não tinha para onde fugir. Tinha-lhe dois recursos: um era pular na cabeça de Dona Rosa e a outra era ficar quieta e receber o castigo. Chibinha olhou para minha mãe, deu um miado triste, ficou encolhidinha e minha mãe jogou metade da água da vasilha na carinha bege dela. A gatinha não reagiu; piscou para expelir a água que entrara nos olhos e voltou a, simplesmente, olhar triste para minha mãe como que dizendo:
         - Pode continuar a judiar! – minha mãe parou com tudo, abraçou a gatinha carinhosamente e, com os olhos mais molhados do que os da gatinha disse:
         - Ah!Meu Deus, o que estou eu fazendo? Quem é o irracional aqui?

         - A vovó Rosa é muito sentimental, não é pai – ressaltei.
         - E como é, meus filhos!
         - Pai, toda a família saiu de Muriaé, certo? Vocês foram para onde – perguntou o Mateus.
         - Meu pai tinha sido transferido para uma nova obra da empresa no Rio Grande do Sul, para Cachoeira do Sul, mais precisamente falando.
         - E a Chibinha, vocês levaram – perguntei.
         - Não, sua avó me pediu para dar, ela e os outros gatinhos, para alguém e eu dei para o Seu Mané. Ele ficou muito alegre com os presentes. Mas, voltando à venda dos alumínios...

         “Dona Manega me recebeu cordialmente como sempre, pesou o alumínio, deu uma risadinha meio marota e falou:
            - Deu quase dois quilos; o quilo é doze cruzeiros, mas eu, no momento, só tenho quinze! Pago esses quinze cruzeiros por tudo; você quer?
            - Quero!
            Dona Manega pagou-me e colocou o alumínio, que eu vendera, junto com outros em separado. Eu, curioso, perguntei-lhe:
            - Por que a senhora separa esses alumínios dos outros D. Manega?
            - É que esses são alumínios que os meninos, como você, trazem para eu comprar. Eles são separados ‘limpados’ e só então nós juntamos com os outros. Entendeu Lê?
            Fiquei vermelho de vergonha e despistei:
            - Cadê o seu Mané, Dona Manega – perguntei.
            - Ele foi ao pronto socorro fazer um curativo nos pés. Ele me disse que machucou quando revirava sucatas – prontamente me respondeu a senhora do seu Mané.
            Peguei o dinheiro e fui saindo de fininho e pensando:
            - Poxa, fui passar a perna nos outros e me estrepei! Bem feito pra mim!
            Quando estava saindo pelo portão do ferro velho, vi o seu Mané chegando mancando, descalço e com os dois pés enfaixados. Olhei para os pés dele e ele olhou para os meus e viu os chinelos que, com certeza eram os dele:
            - Bom dia seu Mané, machucou os pés?
            - Pois é moleque, machuquei!
            - É só não andar descalço nas madrugadas, seu Mané – zombei-lhe.
            - Tome este par de chinelos, deve ser o seu número. Eu o achei nos fundos lá de casa. Pode pegar, vou descalço para casa guardar o dinheiro do alumínio que vendi. Lá em casa eu calço os meus chinelos velhos.
            Ele resmungou um indecifrável palavrão e eu segui em frente.
            Esse seu Mané era o único que gostava de mexer nos bens materiais dos outros, pelo menos ali no bairro.  Quando ele chegou da Bahia era apenas um mendigo com um saco nas costas e catava sucatas de metais, papelões e vidros para vender. Acabou ficando íntimo de Manega e por fim, vivendo os dois juntos, como marido e mulher.”
           
            - Pai, o senhor falou que ‘ele gostava de mexer nas coisas alheias’ não foi? No popular, quer dizer que ele era gatuno?
- Sim Thiago, é isso mesmo! Vou contar uma façanha interessante...

“Perto do nosso querido bairro Barra, que é afastado do centro da cidade uns três quilômetros, tinha um sítio onde o proprietário mantinha um laranjal e outras frutas além de criar galinhas. O pomar comportava uns setenta pés de laranja-pera e outros trinta de laranja-lima, todos produzindo e a produção ia toda para o Rio de Janeiro.
O filho, desse proprietário, o Lael, era nosso colega de grupo escolar, mas não da turma de fora da escola. O pai dele não o deixava sair à rua para brincar; só saía com destino à escola – ida e volta controladas no relógio.
Certa vez ele falou que no sítio deles tinha uma assombração, Mas falava de jeito que dava até para acreditar: Dizia ele: - É um vulto de alguém bem velho, com uma capa toda preta, que passa no meio dos pés de laranja com dois sacos nas costas, andando rápido e dando uns pulinhos esquisitos. O meu pai falou que eu ando lendo muitos gibis de terror e me proibiu de voltar a lê-los. Por isso troquei todos com você, não é Lê?”

- Era verdade, nessa troca ele me deu três gibis de terror por um de faroeste. Minha coleção quase triplicou, pois troquei todos os de terror por gibis de faroeste e de aventuras nas selvas, na base de um pelo outro com o Tião Igreja, que era fascinado por história de terror.

“Mas eu, Ciro, Djalma, Tutti, Carlos Zoião, Chinão, Cangerê, Angelim e mais uns dois ou três moleques, não acreditamos nisso. Nós achávamos que era para nos por medo e não irmos lá para chupar laranjas de graça, e nem nos importamos com o que ele nos contou.
Numa sexta feira, por volta das dezenove horas, eu, Ciro, Cangerê e o Angelim, - o mais parrudo da turma – resolvemos ir à casa do Lael trocar alguns gibis e pedir umas laranjas-lima. O pai dele, muito a contra gosto, nos deu algumas laranjas, mas das comuns, ou seja, não era nem pera nem lima, eram azedas de lacrimejar, só dava par chupá-las com sal. Despedimos do Lael e quando estávamos saindo do sítio, atrás de um galpão, ouvimos um barulho de coisas caindo após uma trombada de alguém.
Todos, quase ao mesmo tempo, pegamos os estilingues e...”

- Pai, o que é estilingue – perguntou o Mateus.
- Era o um tipo de artefato que quase todos os meninos faziam na época. Era composto de uma forquilha de galho de árvore – geralmente de goiabeira, devido a maior rigidez -, duas tiras de borracha de câmara de ar de automóvel ou de bicicleta e um pedaço de couro. Amarrávamos uma tira em cada lado da forquilha e também no pedaço de couro e estava feito a nossa ‘arma’.
- Já sei pai, chamavam também de atiradeira, não é mesmo?
- Isso mesmo, Lipe!

“Todos pegamos os estilingues, municiamos com bolinhas de gude das grandes e esperamos para ver o que era.”

- Espera aí, bolinha de gude é o mesmo que crica, búrica ou bulita, não é?
- Isso, Thiago, é a mesma coisa; em cada região do país dá-se um nome ou, melhor dizendo, um apelido!

“Quase morremos de susto. Era uma pessoa coberta por uma capa preta esfarrapada e velha, com capuz e dois sacos nas costas. Começamos a gritar e a soltar estilingadas pra cima dele. O pai do Lael veio com uma espingarda na mão e colocou a assombração na mira. A cabeça da pessoa sangrava, pois tinha sido acertada com uma bolinha de gude de um dos meninos. O pai do Lael pediu ao Ciro para ir chamar o guarda do posto que ficava ali perto.
Quando ele chegou, trazendo o soldado, descobriu-se o mistério. Não era assombração coisa nenhuma; era o seu Mané que sempre ia lá buscar laranjas nos dois sacos que levava nas costas.
Seu Mané passou três dias de molho na cadeia da delegacia. Depois o pai do Lael mandou soltá-lo a pedido da Dona Manega.  Seu Mané só buscava alimento para a meia dúzia de porcos que ele mantinha dentro de uma pocilga no fundo do ferro-velho. O pai do Lael, depois daquele dia, deixou o seu Mané pegar as laranjas que caiam no chão para dar aos porcos só que, de dois em dois dias. Além disso, juntava uma lata de lavagem que não era nada mais do que as sobras das refeições da família do dono do sítio.”

- Esse Seu Mané era um atrapalhado, não é pai?
- Isso mesmo Felipe, e como era! Vou continuar...

“Continuei meu caminho rumo á casa do meu amigo trocador de gibis. Lá chegando constatei que o Valeriano não tinha nenhum gibi que eu não lera, mas como ele estava doido por um de aventuras interplanetárias que tinha, fizemos a permuta por duas que eu já lera; talvez por estar com pena dele.”

- Ué pai, mas não se trocava uma pela outra quando eram gibis normais? O Valeriano deu dois gibis pelo seu – atento pedi uma explicação.
- É Thiago, mas desde aquela idade eu já sabia negociar. Como eu já tinha lido todos os gibis que ele me mostrara eu fiz uma proposta e ele aceitou, numa boa – tentou explicar meu pai.
- Mas pai, pena do Valeriano por quê? Ele não era rico e tinha dinheiro à vontade – expressou o Lipe.
- Eu vou contar o que aconteceu com ele:


Continua no capítulo IV:
MEU AMIGO VALERIANO

VIDA EM VIRTUÁLIA : Paraísos Distintos


PARAÍSOS DISTINTOS
OU 
A NOVA MORADA DO
ETEVALDO

Pantanal- MT, domingo; doze horas:
         - Bah, tchê! Mal chegaram e já estão de partida? Fiquem pelo menos mais uma semana – insistia o Amilton.
         -Temos compromissos inadiáveis lá em Minas na próxima semana, amigo. Foi muito bom este descanso com a natureza pantaneira sem falar, é claro, no legítimo churrasco gaúcho, peixadas, feijão tropeiro e arroz de carreteiro. Vamos programar as próximas férias e ficaremos pelo menos dez dias aqui neste paraíso!
         - Patrão, o Condor já está pronto e já levei as bagagens dos vossos amigos!
       - O piloto Pinho está impaciente porque está armando chuva lá no horizonte – alertou o Jerônimo.
         - Vamos nessa, Rô! Até as férias de Julho Amilton e Carmem; as portas de nossa casa estão sempre abertas para vocês lá na Manchester Mineira, ok – falava enquanto trocávamos abraços de despedidas.
         Foi rápido a decolagem em Cáceres e a aterrissagem no aeroporto de Várzea Grande, na grande Cuiabá. Em menos de uma hora estávamos acomodados no confortável jato destinado à capital mineira.
         - Rô, já que você vai aproveitar para ler um livro eu vou tentar dormir e...
         ...
         - Cada vez que venho visitar o Juliano e o Beijo, tenho que atravessar o CMV (Cemitério Municipal de Virtuália) – conversava comigo mesmo -, tomara que eles estejam em casa! Ah! Lá está o Hibisco pintando um túmulo:
         - Ei Beijo, tudo bem? – gritei.
         - Boa tarde, seu Lê, que prazer em revê-lo! Já terminei esta pintura; vamos lá para casa que minha família já me espera para tomarmos café! O Ju está no ateliê dele lá na cidade, mas daqui a pouco ele chega dirigindo a Variant azul cobalto!
         - Já sei! Com as portas cor de rosa, não é – completei.
         - Engana-se, nos a reformamos e ela está, agora, toda azul cobalto, original – falou-me da novidade.
         - Toma café com a gente enquanto espera, seu Lê?
         - Claro, seu Zé das Flores, com muito prazer!
         Em poucos minutos Juliano chegou e eu pude ver a maravilha que ficou a Variant:
         - Ei, seu Lê, que prazer em revê-lo, o que o trouxe aqui na nossa “assombrosa” moradia?
         - Vim buscar você, Beijo e o Zé das Flores para irmos até o sítio do Nhô; temos que tratar de um assunto sério – intimei a todos.
         - Já sei do que se trata – antecipou o Juliano -, o Nhô já conversou comigo sobre o assunto.
         - Então fica mais fácil, e o que acham?
         -Iremos só nós dois, ou seja, eu e o Beijo – falou- me já decidido o Ju.
         -Tudo bem, eu estou pronto! Vamos lá para o Nhô agora; hoje é o dia combinado e já está quase na hora – acrescentei.
         - Lembra, seu Lê, o Kobauski falou para não levarmos nada!
- Bem lembrado, Hibisco!
-Posso pilotar a Variant até o sítio do Nhô, Juliano – perguntei quase implorando.
- Claro, seu Lê, o senhor vai sentir o quanto ela está inteira!

No sítio:
- Ei Nhô, chegamos – gritou Juliano.
- Oi, pessoá, tudu prontu? Ieu já tava percupadu cum tempu combinadu. Já inté vi uns crarão lá pelus ladu du pomar!      
- Posso deixar a Variant dentro do galpão Nhô, perto da carroça?
- Craro qui podi seu Julianu!
Em alguns minutos estávamos perto das pitangueiras e de repente iniciou a abertura do portal de luz e surgiram o Kobauski e o Etevaldo:
- Boa tarde gente, podemos ir – perguntou o Kobauski.
Atravessamos o portal e lá estava a enorme bola de fogo, mas apagada, e nesse estado, ela era apenas uma esfera parecida com aço inox, porém dourada.
Num sinal com a mão direita e num comando de voz abriu-se uma entrada na nave, e Kobauski, virou-se para o portal disse as três palavras estranhas e, com a mão direita apontada em direção a ela, esta se apagou.
Estávamos num espaço entre a realidade e o virtual ou entre o real e o sonho ou entre o concreto e o abstrato ou, talvez, num lugar que não sabíamos explicar.
Kobauski foi à frente, depois seguimos os passos compassados e firmes do Nhô e, por último o Etevaldo que, ao entrar na nave, virou-se para a porta, disse duas palavras inteligíveis e a porta se fechou, aliás, a entrada desapareceu.
A bola dourada era como a que nos levou de Virtuália à Apiacá-Mt, porém era bem maior e, dentro, tinha vários seres da raça do Kobauski e, pelo que se via, cada um tinha sua determinada função.
O bólido começou a zunir e a emitir uma claridade enorme do lado de fora. Dava pra ver tudo, não sei como, mas dava. Quando fui perguntar ao Etavaldo, que estava do meu lado, para onde estávamos indo ele antecipou-me...
- Chegamos, seu Lê! É aqui o planeta moribundo. Vamos ficar aqui por uns instantes para que, os que aqui ficaram, nos acompanhem e deixem este lugar condenado de vez!
- Podemos sair para ver como ele é Etevaldo – perguntou o Juliano.
- Não, Mamy, não podem. Nós mesmos só podemos andar pelo planeta com equipamentos especiais; a atmosfera está rarefeita e perigosa e, além disso, não temos equipamentos para o tamanho de vocês. Porém, poderão ver tudo daqui de dentro da esfera!
E à medida que o zumbido e o brilho diminuíam parecia que estávamos flutuando sobre o solo do planeta.
- Olhe “amoré”, a imagem é como se fosse em 3D, aliás, parece que estamos na paisagem – disse Ju ao Beijo.
- Vocês podem ver tudo que se passa lá fora, mas os de fora só veem a bola dourada – explicou o Kobauski.
As imagens que víamos eram incríveis e vou tentar explicar:
Não tinha um sol como nossa Terra e nem uma Lua. A sensação é que era um eterno final de tarde; o céu não era azul, porém super estrelado. O que mantinha aquela penumbra eram algumas partículas de ouro monoatômico que ainda existiam na estratosfera do planeta. Não havia nuvens e nem vegetação; de onde estávamos e até onde nossas vistas alcançavam e a semi escuridão permitia, víamos leitos secos de rios e Etevaldo me falou:
- Aqui era semelhante à Terra de hoje. Como veem, está parecido com o outro planeta do sistema solar da Terra, ou seja, Marte. Aqui vocês estão presenciando o estágio final de vida de um planeta!
A minha curiosidade me inquietava e perguntei:
- Etevaldo, se estivéssemos na Terra, no sítio do Nhô e olhássemos para o céu, onde estaria localizado este planeta?
- Estamos há 0,71 ano luz à direita do Sol, quando ele surge no horizonte terráqueo – respondeu-me Etevaldo.
- Mas essa distância, em astronomia terrestre é quase nada e ele poderá entrar no nosso sistema solar – falei-lhe alarmado e o Juliano complementou:
- Se isso acontecer vai ser um caos a nível galáctico, não seu Lê?
- Com certeza Juliano e vai desestabilizar todo nosso sistema solar; talvez o tão falado fim do nosso mundinho terrestre - filosofei tragicamente.
Kobauski ouviu nossa conversa e interferiu:
- Este planeta, em que estamos agora e que é duas vezes o tamanho da Terra, entrará em rota de colisão com um grande cometa em breve. Isto nós já sabíamos há séculos terrestres. O que vai acontecer depois disso é imprevisível!
Nisto outro ser da raça alienígena interrompe a conversa e dirigiu a palavra ao comandante:
- Senhor, terminamos tudo o que tínhamos que fazer aqui!
- Ok! Vamos partir em comboio imediatamente – ordenou o comandante Kobauski.
De nossa esfera, víamos incontável quantidade de esferas se incandescendo e entrando em um gigantesco portal de luz; eu imaginei:
- Em segundos estaremos na nova morada! Ledo engano; demorou mais de doze horas e da nossa nave só dava para ver cores, flash de luz e repentinas escuridões passando pela gente ou seria melhor falando, nós passando por elas.
Até que:
- Nhô, acorde que já chegamos – disse o Etevaldo ao sonolento preto velho.
- Eh!Eh!Eh! Inté pareci qui issu tudu é um sonhu, misifiu!
Houve a desaceleração de todo o sistema da esfera e Kobauski falou:
- Estamos saindo do portal para a Arret; olhem como é deslumbrante!
Era dia e, no céu mais azul do que o da Terra, tinha diversas nuvens branquíssimas e de vários tons de cinza. Um sol maior que o Sol, que conhecemos, estava à pino. No horizonte outro sol estava como o nosso Sol estaria às quinze horas, só que bem menor e com menos brilho, talvez pela distância.
- Está vendo aquele astro que está a três horas de se por no horizonte, seu Lê – perguntou Etevaldo apontando.
- Sim, meu amigo, eu já o tinha reparado, o que é que tem?
- É a Canis Majoris, é a maior estrela que conhecemos; tanto nós quanto os terráqueos. Está a muitos anos-luz de distância deste sol que está a pino e que dá vida a esta nova morada e... - Kobauski entrou na conversa e adicionou:
- Aqui não tem lua e além deste, só existe outro planeta, que não ousamos visitar, pois sua gravidade é altíssima e impossível de manter qualquer vida que conhecemos. Tudo o que entra neste sistema solar é absolvido por ele. Não nos atrai quando entramos e saímos da atmosfera de Arret por que viajamos através de túneis que existem no vácuo e que a ciência terráquea sequer conhece os princípios deste tipo de locomoção!
- Vivendo e aprendendo, não é Nhô – falei ao meu velho amigo e pensei: “Se aquele astro distante á a Canis Majoris, então, lá da Terra, poderei localizar Arret, pelo menos em teoria!”
- Tô mi sintinu um bagri fora dágua, seu Lê, eh!eh!eh!eh!
- Geeeennnteeemmm, tive uma ideia para minha fantasia para o próximo carnaval: -“ Astronauta Juju e sua expedição de ETs” –, vai ser o máximo e toda a nossa família vai participar, Beijo - deslumbrante com tudo gritava Juliano quase histérico.
- Senhores, desde que entraram nesta esfera, vocês estavam se ambientando com o clima de Arret, portanto podemos descer sem medo e sem equipamento algum – explicou Kobauski.
- Intão é prurissu qui tava mi sentinu tão bem i cum muntcho sonudisse Nhô.
Sobrevoamos florestas imensas; rios longos e largos; dois oceanos - um verde e outro azulado -; montanhas altíssimas; savanas, porém não vimos nenhuma faixa de desertos. Da espaçonave dava para ver que em determinadas regiões chovia muito. Existem apenas três continentes separados por esses dois oceanos, que não se encontravam nunca, pelo menos na superfície. O continente maior se estendia pelo planeta de polo a polo com uma largura que ocupava um quarto do total do território sólido. Na linha do equador e em cada mar estavam os outros dois continentes como se fossem duas enormes ilhas cobertas de florestas e foi na linha do equador do continente maior que a nave pairou a uns três quilômetros de altura e Etevaldo falou-nos:
- Amigos olhem para além daquelas colinas; é lá que ficam nossas aeronaves intergalácticas guardadas. Olhem como todos que nos acompanhavam no comboio já arretizaram, isto é, pousaram – e Etavaldo apontou para o sentido oposto às colinas dizendo:
- Lá está Imaginópolis a capital de Arret e é lá que fica a sede que administra nossa civilização!
Em poucos minutos a esfera pousou sobre um pedestal em uma espécie de hangar e dela saímos. Um veículo, que flutuava a uns cinquenta centímetros do chão, nos aguardava e nele entramos. Em absoluto silêncio esse veículo começou a deslizar:
- Pessoal, vamos para a minha casa; papai vai para lá depois, assim que terminar a reunião com os superiores – disse-nos Etevaldo.
Reparei que não havia rodovias, apenas caminhos e numa explicação Etevaldo nos falou:
- Não usamos transporte que mantém contato com o chão, seu Lê, por isso não tem rodovias. Os caminhos são usados pelos nativos e os animais!
Passamos por várias fazendas de um tipo de gado, de lavouras, viveiros de certos tipos de animais aquáticos e muitas manadas de java porcos e foi Etevaldo que as apontou dizendo:
- Olhem, aqueles java porcos são descendentes dos que surgiram no Vale Virtualiano do Rio do Peixe – acreditei porque foi nosso amigo quem nos contou, pois esses daqui são quase o dobro do tamanho dos da criação da Xerequéia.
- É o tipo de alimentação que eles comem, seu Lê, e, também, pelo ar que eles respiram. Este ar tem mais oxigênio e a poluição é, praticamente, zero – explicou o filho de criação do Papy e da Mamy.
Na sede da fazenda nos esperavam a família, propriamente dita, do Kobauski: o pai, a mãe e a noiva. As mulheres daquela raça diferenciavam dos machos pelos olhos puxados e foi aí que entendi a paixão do Kobauski pela chinesinha Édila Ladron, em Virtuália.
Não trocamos nenhuma palavra, porém bastava olharmos nos olhos e comunicávamos pela mente; era como se conversássemos.
- Boa tarde mãe, pai e Niokausli, minha noiva, vamos almoçar?
- Craro seu Kobausqui, nóis só tamu esperanu ôce!
- Faço minha as suas palavras Nhô – falei na expectativa de ver o que comeríamos e, não deu outra:
- Olha, Beijo, my Love, é java porco e saladas de vegetais e legumes que não conhecemos – falou Ju.
O almoço aconteceu com troca de diálogos falado e telepatizado até que Juliano dirigiu a palavra ao Kobauski:
- Meu grande amigo, eu e o Beijo precisamos voltar antes do carnaval de Virtuália, pois desta vez eu vou ganhar com a minha fantasia idealizada nesta viagem. Depois, talvez, nós voltaremos para ficar. Peço-lhe que, no retorno desta viagem, vocês me deixem com o Hibisco em Cachorreira do Sul!
- Já sei o porquê – interrompeu o Etevaldo -, e não precisa ir até lá, aliás, até podem para descarga de consciência, mas eu já tenho a resposta!
- É sobre o Cica, o homem que criou o meu Juju, Etavaldo – perguntou o Hibisco mais conhecido como Beijo.
- Também é isso Hibisco, porém olhem para aquela parede branca – interou o Etavaldo e todos olharam e viram a imagem do Cica, transvestido de mulher, sendo morto por uma matilha de Pitt-bull na zona boêmia de Cachorreira do Sul e alguns flashes de sua mãe, a Badica, uma pedinte e mendiga que era a cara do Juliano.
- Mom Dieu, este é realmente o negão Cica e aquela... aquela... é a minha mãe, Etevaldo – perguntava balbuciando o Juliano.
- É ela mesma Mamy e, veja como ela sucumbiu – falou Etevaldo.
Ao falar isso, apareceu, na parede branca, a imagem da Badica sendo massacrada pela paineira velha que caia sobre o casebre em que ela vivia, devido a um terrível temporal. O casebre era feito de madeira usada e coberto de zinco, assentado em um lote invadido na Rua Ricardo Chouriço na falida Capital Nacional do Arroz Doce Sem Canela.
Juliano chorava de soluçar nos braços de Beijo e falou:
- Esqueça Cachorreira do Sul, Etevaldo, leve seu Papy, Mamy e amigos de volta ao sítio do Nhô em Virtuália!
- Iremos amanhã à tarde, Ju. Já combinei com Kobauski para fazermos um passeio rápido por Arret antes de voltarmos, pois o Nhô e eu não podemos ficar. Agora, quanto você e ao Hibisco, vocês decidem – falei taxativo.
- Nós vamos voltar para a Terra e o Etevaldo nos buscará após o carnaval, não é Beijo – concluiu o Ju.
- Isso mesmo- respondeu o Beijo -, você concorda Etevaldo?
- Então está acertado, depois da festa carnavalesca de vocês, estarei lá para buscá-los e, tomem, levem esta lista de que nós queremos que vocês nos ajudem a trazer quando do nosso retorno na volta de vocês a Arret. São sementes que ainda não trouxemos da Terra – concluiu Etevaldo.
Ficamos ali após o almoço conversando até ao anoitecer e nunca vimos anoitecer tão magnífico. Negro total com enésimas estrelas cintilando com várias cores de brilhos e tamanhos. As chuvas de meteoritos eram incríveis e constantes. A noite passava rapidamente, talvez mais rápida do que o dia, mas Kobauski falou-nos que era só impressão, ambos tinham a mesma duração.
Ao amanhecer: primeiro surgia o sol distante deixando aquela parte do planeta numa penumbra por cerca de três horas e, três horas após, o sol maior surgia terminando com a penumbra e deixando a nova morada com uma claridade sem igual.
Ficaria séculos terrestres narrando as novidades e as belezas daquele paraíso celestial, mas alguma coisa me dizia que deveria voltar e falei:
- Nhô, precisamos voltar para nosso mundo e... peraí, meu amigo, deixe-me ver uma coisa na tua cabeça!
- U qui qui é, misifiu, num mi diga qui ôce tá venu pioiu nus meus cabelu brancu?
- Não é isso Nhô, os seus cabelos estão ficando negros de novo – exclamei.
- É mesmo, Nhô – falou Juliano -, e os seus também seu Lê. Olhe naquele metal que fica perto da porta e que parece espelho!
- Isso é assim mesmo, é a atmosfera e os raios deste sol que produz esse efeito. O organismo de vocês ganha nova vitalidade à medida que o tempo passa com vocês aqui entre a gente – explicou Etevaldo e continuou:
- Vamos para a esfera para podermos ir até o portal e pedir autorização para entrarmos no túnel de transposição!
Despedimos da família do Kobauski, prometendo voltar e passearmos pelo planeta já que de momento não seria possível e Etevaldo me falou:
- Não poderei ir com vocês; meu pai os levará de volta, mas irei buscá-los na data combinada, ok?
- Tudo certo, Etevaldo, eu e o Papy estaremos prontos – disse o Ju.
Em poucos minutos estávamos retornando à Terra e o Nhô me disse:
- Qui pena qui ieu to mai prá lá du quê prá cá, seu lê, si não ieu iria montá um sítiu pertu du di Etevardu. Ôce viu qui riberão crarinho qui disaguava naqueie outro rio malhor qui tava cheim di pexe criadu, inté tavam pulandu prá cima dágua! Seria ali u meu cafôfu!
- Se o senhor quiser é só me falar, Nhô; temos muito que aprender contigo, com sua sabedoria verdadeira e experiência de vida terráquea – disse-lhe Kobauski e prosseguiu;
- Podemos dar um jeito para que vivas muito mais do que pensas, meu amigo!
- Num careci não Kobausqui; u meu tempu di vida é o qui o Criadô mim deu na Terra. É lá qui tá todu us meus sonhu, minhas lembrança, minhas sôdade, minhas tráias, minha horta, meu pomar, meu riu, meu riberão, meus amigu e... – interrompi:
- Tem razão, meu amigo, cada um no seu espaço e tempo!
- Kobauski, se sentirmos saudades do Etevaldo, de você e seu povo e quisermos vê-los, como devemos contatá-los para visitá-los – perguntei.
- Ora , seu Lê, é só o senhor imaginar, ou melhor, dizendo, use a sua imaginação – respondeu-me o pai biológico do Etevaldo.
- Eh!Eh!Eh!Eh! Issu é qui num farta prôce, num é memo, Misifiu?
A viagem de volta parecia mais longa e o cansaço tomou conta de nossos corpos e Kobauski alertou:
- Vocês, desde que saímos de Arret, estão vivendo o mesmo clima da Terra aqui dentro da esfera. Não resistam ao sono, durmam e quando acordarem estarão no lugar de onde os buscamos na Terra!

- Lê... Lêêêê, acorde que já chegamos a Confins. O Dinho, seu irmão caçula, já está nos esperando para levar-nos à casa de sua mãe que, aliás, fará oitenta e seis anos amanhã, não é mesmo – acordava-me a Rô dentro da aeronave terrestre e falou alarmada:
- Noooossa, Lê, você vai ter pintar seus cabelos de novo, as raízes já estão todas brancas!