ARRET
A NOVA MORADA
Flor
da
Bosda
Três horas e
trinta e um minutos de uma madrugada chuvosa e fria:
- Quer saber de uma coisa – perguntei a mim
mesmo -, vou voltar para junto da Rô e é
agora!
Entrei
na GMC e acelerei pela estrada lamacenta que liga o sítio à rodovia.
Na Zona
da Mata Mineira:
- Doutor José Walter, o meu Lê está
acordando! Corra, por favor, ele está se debatendo muito - gritava a
patroinha.
- Calma Dona Rô, ele vai se acalmar –
falou o médico aplicando-me uma injeção através da mangueirinha do soro.
- Olha, doutor, ele está sangrando pela
narina esquerda – gritava, quase ao desespero, a Rô.
- Enfermeiras ajudem-me a transportá-lo para
a UTI! Rápido!
Por uma
fração de segundos pude perceber onde eu estava e tudo ficou escuro.
Na
estrada do sítio um enorme eucalipto Umbra cai em frente à Vermelhona, perdi o
controle da direção ao freiá-la, e vou, de frente, ao encontro de uma enorme
jaqueira carregada de jacas; muitas maduras. Abri a porta da caminhonete para
ver o estrago e uma jaca semi-madura cai-me no rosto me pondo a nocaute por
alguns segundos. Levantei-me e vi que não tinha acontecido quase nada com a
robusta GMC. Entrei na boleia e acelerei rumo ao meu mundo verdadeiro,
limpando, com meu lenço, o meu nariz que sangrava.
No
hospital Mineiro:
- Onde estou – perguntei à enfermeira
jovem e bonita.
- Fique tranquilo, seu Lê, o senhor está na
UTI do melhor HPS particular da Zona da Mata Mineira.
- A Rô? Onde está a Rô?
- Ela foi a sua casa tomar banho, dar uma
descansada e voltará quando anoitecer – respondeu-me a enfermeira sósia da
Ingrid Bergman, quando esta tinha vinte e poucos anos.
- Quanto tempo fiquei desacordado?
- Por vinte e quatro horas, desde o seu
último desmaio. O senhor foi operado na narina esquerda, mas já está tudo bem –
falou a “formosura em pessoa” enquanto me injetava medicamentos intra-venal e
me informou:
- O senhor ficará sedado por setenta e duas
horas.
- O que foi isto que você aplicou em...
eu...
Na
estrada de volta para o sítio:
- Caramba, parece que foi ontem que bati com
a Vermelhona em uma jaqueira. Ainda trago o cheiro de jaca madura nas narinas.
Ah! Como o dia está lindo! Quanto tempo faz que saí do Vale do Virtualiano do
Rio do Peixe?
Seguia
cantarolando a música sertaneja que tocava na estação FM Sideral de Virtuália,
no som da GMC. Quando entrei na estrada, que liga a rodovia ao sitio, vi, a cinquenta metros, uma árvore que me
chamou a atenção. Parei a caminhonete e fui, a pé, ver mais de perto:
- Caramba! É uma árvore de bosda! Como veio
nascer por aqui? Será que... não, não é possível! Fomos revistados e o detector
da nave-mãe não constatou nada, nem na entrada e nem na saída de seu interior.
Será que veio em algum meteorito? Engraçado ela parece que está morrendo.
Subi na
GMC e, cerca de cem metros depois, vi outra bosdaneira:
- Não é possível! Como essas árvores vieram nascer por aqui?
Há cem
metros do sítio vi a terceira árvore de bosda, também em estado terminal, e
pensei:
- Com certeza existe uma explicação e o Nhô
a terá, com certeza!
No
sítio:
-Nhô, cadê você?
- Ei! Seu Lê, ieu to aqui na minha
istufa di muda di pranta! Vem cá, sô!
- Bom dia “Véi”! Como vai essa força? E
a família?
- Tá tudu bão, seu Lê, cum ieu i as
mininas.
- I ocê, Misifiu, tudu bem? I a
patroinha, dona Rô?
- Ela está ótima, Nhô! Eu é que não
estou muito bem. Ainda sinto muita dor e pressão na cabeça.
- U nêgu véi aqui vai fazê uma
garrafada i ôce vai miorá im dois palitu – interrompi o Nhô perguntando:
- Que mudas são essas “Véi”? Caramba, são
muitas, hein?
- É di sementi di umas árvi qui nasceru
na istrada qui vem prô meu cafofo. U Zé das Flô pidiu prá ieu fazê muintas muda
qui ieli vai pranta prá despois coiê as fruta.
- Já sei! Vai usar as polpas das frutas
no preparo de cervejas, não é?
- Mai num é uma cerveja quarqué,
Misifiu. É uma bibida dus deuseis, eh! Eh! Eh!
- Essas mudas já é a segunda veizada
qui façu. Ielas são fia das três árvis qui ôce viu na istrada i qui já tão
morrenu di véici. Só deu prá fazê treis coieta di fruta deias, seu Lê. Nunca
ieu tinha ovidu falá déias. Quandu ieu puis reparu na margi da istrada ielas já
tavam cheia di fruta.
- Lá em Terra-II chamam-na de bosda. Não sei
como vieram parar aqui. Vou lá para Virtuália conversar com o Juliano para ter
uma pista. O senhor vem junto?
- Num possu não, Misifiu, tenhu qui
terminá essi prantiu di sementi hoji. Si ieu prantá agora, di noitinha as mudas
vão tê seis centimitru – respondeu-me o meu amigo.
- Está bom, Nhô. Vou só. De tardinha vou lá pro
Boteco dos Caldos rever os nossos amigos. Se o senhor quiser me encontra lá,
OK?
- Tá bão, seu Lê! Despois das treis
horas vô tê qui levá uma carroça di muda di seti dia prô seu Zé lá nu prantiu
deie pertu du cimintériu. Despois ieu vô
tê incontrá lá nu Goró!
- Nhô, e se a gente levasse as mudas
agora? Podemos encher a Vermelhona e...
– fui interrompido:
- Num pódi, seu Lê! Daqui a poco u Sór vai
tá frevenu di quenti. Essas mudas são muntchu frági. Ielas tem qui sê prantada
nu iníciu da noiti. Agora iela tem uns catorzi centimetru i amanhã cedu vão tá
com uns vinti i cincu centímetru. Só
despois, quandu iela istivé dessi tamanhu, é qui fica resistenti au nosso Sór.
- Caramba, como o senhor sabe de tudo
isso, “Véi”?
- Ieu “apanhei” munchu cás premêra muda,
seu Lê, eh! Eh! Eh!
- Esse é o Nhô que eu conheço! Encontrar-nos-emos
no Boteco, OK?
- Tá bão seu Lê! Ah! Seu Lê, lá no Goró
já tem das cerveja dus deusis. U Julianu batizo ielas di “Flô da Bosda”, eh!
Eh! Eh! Só é vendida lá.
- Ah! Ah! Ah! Esse nome só pode ser
ideia de um carnavalesco! Grande Juliano, ah! Ah! Ah!
- Nhô, fala para a Xerê que vamos
trazer caldo lá do Buteco para jantarmos, OK?
- Tá bão Misifiu, boa indéia!
Chegando
ao CSV. Na parte dos fundos, na casa do zelador, nem precisei buzinar, pois
Beijo estava entrando pela parte lateral e tinha me visto e abriu o enorme
portão:
- Bom dia, seu Lê, que bons ventos o traz até nossa singela residência?
- Bom dia Hibisco, cadê todo mundo?
- O restante da família tá lá na
fabriqueta artesanal de cervejas. Na parte da manhã, todos ficam empenhados lá, já que o expediente
na PSV começa depois do meio dia.
- Onde fica a fabriqueta? É longe
daqui?
- É aqui mesmo, seu Lê! No galpão onde
o Juju faz suas fantasias em época de carnaval.
- Vou lá então! Preciso falar com ele e
com o seu pai, Beijo.
- Tá bom! Posso estacionar a GMC à sombra
daquele flamboyant – pediu o Hibisco cujo apelido é Beijo.
- Pode! É toda sua!
- Seu Lê, eu acho essa caminhonete a
mais linda do universo!
- Obrigado, meu amigo! Eu também penso
assim.
Ao
chegar à porta do galpão resolvi parar e, antes de entrar, dar uma olhadinha
pela janela de vidro:
- Olha só, montaram uma produção organizada
da bebida. Cada um faz sua parte. Trouxeram a experiência da fabriqueta de
conservas de minipepinos de Terra-II para fabricarem cerveja artesanalmente!
Resolvi
entrar:
- Bom dia boa família, que bom vê-los
trabalhando unidos e organizados!
A
resposta foi de todos em uma orquestra de vozes:
- Bom dia, seu Lê!
Juliano
tomou a frente nos cumprimentos:
- Olá meu grande amigo! Está vendo no que
transformei o galpão das fantasias?
- Estou sim e é sobre essa cerveja que
vocês fabricam que eu gostaria de trocar umas ideias –
respondi-lhe.
Juliano falou ao Beijo, que já estava ao meu
lado:
- Beijinho, tome o meu lugar na colagem dos
rótulos que vou dar atenção ao seu Lê, OK?
- OK, Juju, deixa comigo!
- Vamos até lá em casa, seu Lê! Já são
quase onze horas e vamos tomar uma “Flor da Bosda” bem gelada com picles de
pepino, couve-flor e mini-cebolas; que tal?
- Ótimo Juliano! Onde está o seu Zé das
Flores e a Margarida? Não os vi entre vocês?
- Seu Zé está no pomar cuidando das árvores
de bosda e a Margarida ficou em casa cuidando do almoço. Hoje é o dia em que
ela se responsabiliza pela rotina da casa. Cada dia da semana é uma das
meninas. Nos finais de semana eu e o Beijo cuidamos do quintal, horta e jardim.
- É muito bom termos atividades, não é
Juliano?
- É sim seu Lê! Das segundas às sextas o Beijo e o seu Zé cuidam do CSV das
doze às dezoito horas; eu, à tarde, dou as minhas aulas e as meninas também têm
seus afazeres depois do meio dia, lá na prefeitura.
Chegando
à varanda da cozinha da casa?
- Maga! Ei Maga! Venha ver quem veio almoçar
com a gente – gritava o meu amigo. Margarida veio à varanda e me viu.
- Seu Lê, que prazer em tê-lo antre nós
novamente. Parece que adivinhei que o senhor viria, pois estou preparando
costelinhas de java-porco, couve, salada de legumes com... – interrompi a
Maga:
- Já sei: ...com rabanetes e pepinos!
- Ah! Ah! Ah! Acertou! Para beber fiz suco
de bosda com abacaxi.
- Ahhh! Eu estou na varanda da cozinha
do paraíso – deixei escapar essa frase.
Sentamos
nas poltronas de palha ao redor de uma mesa na qual o Juju já arrumara,
enquanto conversava com Maga, as cervejas e os tira-gostos.
- Prove seu Lê – disse-me enchendo um
copo – estas foram feitas na semana
passada.
Sorvi um
gole e o segurei na boca por alguns segundos e engoli:
- Ahhhh! Come isto é possível? Ficou ainda
mais saborosa do que a de Terra-II!
É por
causa da água, meu amigo! Usamos da água mineral da mina do sítio do Nhô. Todos
os dias eu busco quatro tambores de duzentos litros cada. Trago no caminhão
Fargo 1954 que compramos com a venda das cervejas; a maioria delas para o
Boteco dos Caldos. O Nhô nos dá a água de graça e quando ele ou a Xerê quer,
nos lhe damos, também sem ônus, algumas cervejas.
- Entendi! Vocês estão fazendo cerveja
artesanal usando polpa de bosda em lugar do lúpulo, não é Juliano?
- Sim seu Lê! Nasceram três pés, dessa
fruta, às margens da estrada que vem para o sítio. Não sabemos como explicar o
surgimento das mesmas, talvez tenham vindo em meteoritos.
- Eu vi as árvores, Juliano, e reparei
que elas estão morrendo e rapidamente. As sementes que as originaram vieram em
um meteorito sim, mas chamado Beijo!
- Como assim, seu Lê? Não estou
entendendo!
- Eu explico: - Lembra que não podíamos
trazer nada de Terra-II para a Terra? Até passamos por detectores e
descontaminadores para entrar e sair da nave-mãe?
- Lembro-me muito bem, claro! E não
trouxemos absolutamente nada de lá, pode ter certeza!
- Lembra Juliano, que na hora do
embarque da viagem para Terra, aliás, até antes de embarcarmos, o Beijo comia a
última das três bosda que você deu a ele para desprender os intestinos?
- Sim, mas o que tem isso a ver com
as... peraí...peraí...peraê, acho que estou compreendendo! Foi o Beijinho quem trouxe
as sementes guardadas em seus
intestinos, eu... - interrompi o Juju:
- É isso mesmo! Ele comeu três grandes e
maduras bosda e isto fez com que as sementes passassem pelo metabolismo, desarranjado,
intactas e, também, foram detectadas pelos sensores dos detectores da nave-mãe
e inutilizadas, mas algumas devem ter passado ilesas.
- É isso aí, seu Lê, e quando chegamos o
Beijo defecou em três “moitas” distintas e distantes uma das outras e... –
interrompi novamente:
- E foram exatamente, onde o Beijo fez as
suas necessidades fisiológicas urgentes, que nasceram as árvores de bosda.
- Ah! Ah! Ah! Por esta nem o Kobauski
esperava – ri acreditando nisto e falei:
- Acho bom a gente aproveitar as últimas
produções da “Flor de Bosda”, pois algum fenômeno está acontecendo com essa
planta alienígena.
- É mesmo, seu Lê, pois toda a segunda
geração, terráquea da bosda, só dará uma frutificação e, assim mesmo, com
frutos de péssima qualidade. Inclusive o Nhô nos alertou que as sementes que
mandamos na semana passada não estão germinando nem um por cento. O que pode
ser isso, seu Lê?
- Sinceramente, não sei! Talvez nossa
Terra não seja ambiente para ela; talvez algum tipo de fungo terrestre esteja
destruindo esta extraterrestre; talvez as perturbações do nosso sol – que
acontecem de onze em onze anos -, as tenham afetado, mas só os arretianos
poderão falar, com certeza, a respeito. Quando eu estiver com eles perguntarei.
- É uma lástima, pois se produz uma
inigualável cerveja com a bosda – disse o Juju e prosseguiu:
- Produzíamos quatrocentos e oitenta e
quatro litros por mês a dois meses e hoje conseguimos com muito esforço somente
quarenta e oito litros, por quinzena.
- Então vamos armazenar o que se
produzir e usá-lo em consumo próprio, ou seja, só aqui na sua casa e no sítio
do Nhô. O bom da “Flor da Bosda” é que ela dura mais, quando engarrafas, do que
as cervejas comuns, ou melhor, dizendo, por tempo indeterminado. E, quanto mais
armazenada em lugar apropriado, mais saborosa ela fica.
A
conversa estava tão boa que nem vimos o restante da família chegar para o
almoço e foi a Margarida quem nos chamou:
- Seu Lê e Juju, o almoço já está servido.
Venham!
Almoçamos
rapidamente, pois todos da família teriam que estar em seus postos de trabalho
no máximo às doze horas e dez minutos.
- Seu Lê, se o senhor quiser pode ficar
descansando na rede da varanda. Não vamos poder lhe fazer companhia, pois temos
nossos compromissos e...
- Eu sei Juliano podem seguir as
rotinas de vida de vocês. Vou até a cidade rever os nossos amigos. Estarei no Boteco dos Caldos depois das
dezessete horas e...
- Vou até lá, seu Lê, porém depois das
dezessete e trinta e um minutos quando terminar minha última aula, OK?
- OK, meu amigo! Até mais tarde então.
Todos
tomaram seus rumos e eu segui a pé até Virtuália. Não era longe e a estrada era
simplesmente maravilhosa, ou seja, arborizada e florida do jeito que eu e as
centenas de pássaros gostamos. Pensei comigo:
“– Quanto mais eu viajo para Hy-Brazil mais
virtual ela me parece ser!”
Continua em 06/09/2013:
O
Pangaré
Bittencourt